A Procuradoria-Geral Eleitoral (PGE) passará a tratar com maior rigor, nesta campanha, a concessão de registros de candidatura a políticos condenados por improbidade administrativa. Por orientação da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, integrantes do Ministério Público Eleitoral de todo o país passarão a pedir que a Justiça Eleitoral negue o registro, com base na Lei da Ficha Limpa, a todo político condenado por dano ao patrimônio público ou por enriquecimento ilícito.
Em português claro, no atual entendimento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), um prefeito, por exemplo, condenado por improbidade administrativa só tem sua candidatura negada se ficar comprovado que ele, além de permitir desvios de recursos públicos da prefeitura, enriqueceu ilicitamente a custa do crime. Um prefeito que tenha deixado aliados desviarem recursos de sua gestão, mas que não tenha embolsado o dinheiro, fica livre para concorrer.
É exatamente essa a situação do ex-governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho (PRP). Ele foi condenado em segunda instância pelo Tribunal de Justiça do Rio, numa ação de improbidade administrativa que aponta um desvio de R$ 234,4 milhões da Secretaria Estadual de Saúde entre 2005 e 2006. No último dia 16, o TJ incluiu Garotinho num cadastro de inelegíveis, em razão de condenação por improbidade. Ocorre que o ex-governador argumentou exatamente que não foi apontado enriquecimento ilícito, mas somente dano ao erário, o que não o tornaria inelegível. A convenção do PRP no próximo dia 5 deve confirmá-lo como candidato ao governo do Rio.
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O princípio básico da Ficha Limpa é tornar inelegível candidato condenado por um colegiado na segunda instância do Judiciário. A medida se estende a gestores públicos condenados à pena de suspensão dos direitos políticos por ato de improbidade, seja numa decisão transitada em julgado – quando não há mais possibilidades de recursos – ou numa sentença confirmada por um colegiado de segunda instância.
A lei estabelece punição para políticos que tenham cometido “ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito”. Agora, a PGE vai interpretar o trecho “lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito” como se fosse “lesão ao patrimônio público ou enriquecimento ilícito”.
Ao mudar o entendimento, a PGE passará a considerar inelegíveis tanto o político que desvia recursos e embolsa o dinheiro público quanto o político que permitiu desvios em sua gestão, mesmo sem ter se beneficiado pessoalmente do crime. Em outras palavras, pelo novo entendimento, Garotinho estará inelegível por “lesão ao patrimônio público”, mesmo que não venha a ser comprovado o seu “enriquecimento ilícito”.
BARRADOS PODEM CRESCER
Se for aceita pelo TSE, a nova interpretação da PGE deve ampliar a quantidade de candidatos barrados pela Lei da Ficha Limpa nessas eleições. A procuradora-geral já determinou que os integrantes do Ministério Público Eleitoral levantem quantos candidatos se enquadram no novo entendimento.
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Fontes ouvidas pelo “Globo” relatam que a candidatura do deputado Paulo Maluf (PP-SP) à reeleição em 2014 e uma sinalização do TSE em 2016 foram paradigmáticos para a construção do entendimento na PGE. Agora, em 2018, a procuradora-geral quer fazer valer a ampliação de candidaturas barradas em razão de condenações por improbidade.
Maluf teve o registro da candidatura a deputado federal cassado pelo TSE em setembro de 2014, por enquadramento na Lei da Ficha Limpa. Mesmo assim, ele seguiu em campanha, como é garantido na lei eleitoral – a candidatura estava sub júdice, pendente de um recurso no tribunal. O deputado recebeu 250,8 mil votos e foi o oitavo mais votado em São Paulo. Em dezembro, depois de uma mudança na composição do plenário, o TSE aprovou o registro do candidato e ele pode ser diplomado no cargo.
A discussão sobre o ato de improbidade de Maluf girou em torno da existência ou não de dolo. Na decisão final, os ministros do TSE entenderam que a conduta de Maluf foi “culposa”, não “dolosa”, o que garantiria a ele se livrar da Ficha Limpa. Hoje, o deputado está em prisão domiciliar, após ficar preso por três meses no Presídio da Papuda, em Brasília. O Supremo Tribunal Federal (STF) condenou o parlamentar a sete anos e nove meses de prisão por lavagem de dinheiro no período em que foi prefeito de São Paulo, na década de 90.
A instrução normativa com a orientação sobre como condenados por improbidade devem ser enquadrados na Ficha Limpa foi discutida em reunião do Grupo Executivo Nacional da Função Eleitoral (Genafe), na sede da Procuradoria Geral da República (PGR), na última sexta-feira. Participaram da reunião Dodge e o vice-procurador-geral eleitoral, Humberto Jacques de Medeiros.
No documento, a procuradora-geral cita os quatro tipos de atos de improbidade previstos em lei: os que levam a um enriquecimento ilícito do gestor, os que causam prejuízo aos cofres públicos, os decorrentes de benefícios financeiros indevidos e os que atentam contra os princípios da administração pública. Somente os dois primeiros casos são razões para inelegibilidade.
“A conjunção ‘e’ não significa que se exija presença de ambos em decreto condenatório de suspensão de direitos políticos por ato doloso de improbidade”, sustenta Dodge. “Não há sentido jurídico em aglutinar duas espécies distintas de improbidade, formando uma quinta categoria, para aferir o enquadramento na causa de inelegibilidade.” Por isso, para a procuradora-geral, as ações de impugnação de candidaturas devem ser movidas em caso de lesão ao patrimônio público “ou” enriquecimento ilícito.
Na instrução, Dodge cita um recurso analisado pelo TSE em 2016, movido por um candidato a prefeito no interior de São Paulo, que queria garantir-se na disputa. O candidato, condenado por improbidade, sustentou a não existência de enriquecimento ilícito. “A incidência da hipótese de inelegibilidade em questão demanda a presença concomitante dos requisitos estampados no dispositivo sob análise, quais sejam, o ‘dano ao erário’ e o ‘enriquecimento ilícito’”, argumentou.
O então vice-procurador-geral eleitoral, Nicolao Dino, manifestou-se contra esse entendimento, não enxergando necessidade de se acumular uma coisa e outra. Para ele, a orientação expressa pelo próprio TSE deveria ser revista. “O entendimento de que somente há inelegibilidade quando o ato de improbidade administrativa ensejar dano ao erário e enriquecimento ilícito viola a diretriz constitucional da defesa da probidade administrativa e da moralidade para o exercício do mandato, ao permitir que pessoas que lesaram ou causaram prejuízo à administração pública possam disputar pleitos eleitorais”, argumentou Dino na ocasião.
Mesmo com a manifestação da PGE contrária ao recurso, o TSE decidiu autorizar o registro da candidatura, por unanimidade. Marcelo Pecchio (PSD) acabou eleito para um terceiro mandato de prefeito de Quatá (SP). Os ministros do TSE registraram naquele momento, no entanto, que “a jurisprudência merece revisão, para eleições vindouras, com a fixação da tese de que não se exige, para a incidência de inexigibilidade, que a suspensão de direitos políticos por ato doloso de improbidade administrativa decorra, cumulativamente, de enriquecimento ilícito e dano ao erário”.
Fonte: “O Globo”