Por Bruno Salama e Vicente Braga*
O Fundo Garantidor de Créditos, ou FGC, é um ex-desconhecido do grande público que recentemente migrou das notas de rodapé para a primeira página dos noticiários. Em parte, isso tem ocorrido por conta de pendengas jurídicas. A mais importante diz respeito a algumas tentativas de fazer o FGC pagar por aquilo que não deve.
O FGC oferece uma cobertura de até R$ 250 mil para o titular de crédito frente a uma instituição financeira insolvente. Beneficiam-se da cobertura pessoas físicas e jurídicas. A cobertura é individual. Mas, recentemente, alguns fundos de pensão com créditos contra bancos quebrados têm pleiteado judicialmente que a cobertura para seus créditos seja não de R$ 250 mil para o fundo, como estabelece a lei, mas de R$ 250 mil para cada uma das pessoas físicas com investimentos no fundo. Ou seja: a tese é a de que a cobertura deveria valer não apenas para os credores diretos do banco quebrado (inclusive o fundo de pensão), mas também para cada um dos credores indiretos (beneficiários do respectivo fundo).
À primeira vista, estender a cobertura dessa forma pode parecer uma medida de equidade. Afinal, o FGC é uma entidade rica, e, logo, uns tostões a mais ou a menos talvez não lhe façam falta. Soa bonito, mas não tem sentido prático, e isso por pelo menos dois motivos.
Primeiro, porque a razão de ser do FGC é a de resguardar a confiança no sistema financeiro através da proteção das partes “informacionalmente” vulneráveis. Um pequeno poupador não tem condições práticas de se informar sobre a real situação do banco em que guarda seus recursos: não consulta economistas, não lê balanços, não acompanha o noticiário econômico, não tem amigos influentes. Logo, esse pequeno poupador precisa de uma cobertura de depósito porque não tem como avaliar a saúde financeira do banco na hora de decidir onde aportar seus recursos.
Mas o pequeno investidor com ativos em um fundo de pensão não é informacionalmente vulnerável. Não é que esse pequeno investidor seja necessariamente conhecedor das complicadas dinâmicas dos mercados financeiros; isso geralmente não acontece. Mas é que seus ativos são administrados por entidades profissionais do mundo das finanças que possuem a capacidade de monitorar as instituições financeiras que custodiam seus recursos. Fundos de pensão conhecem o mercado financeiro e jogam o jogo das finanças modernas. Tanto assim que recebem um tratamento menos protetivo em diversos dispositivos da CVM, pois são vistos de modo geral como agentes capazes de compreender os riscos envolvidos em suas escolhas e estratégias. Tudo isso quer dizer que estender aos fundos de pensão uma proteção adicional vai na contramão da lógica da regulação financeira moderna, pois ajuda a blindá-los de riscos conscientemente assumidos e os desestimula a serem cuidados e diligentes nas suas atividades de investimento. Um problema sério, portanto.
Há um segundo equívoco nas decisões judiciais que buscam expandir a cobertura do FGC para os investidores indiretos. Esse é o equívoco de imaginar que a cobertura do FGC tenha propriamente uma natureza de seguro. Nas teses defendidas em juízo por fundos de pensão, o fato da contribuição ao FGC ser calculada em um percentual fixo sobre qualquer valor depositado seria incongruente com a limitação da cobertura. Afinal, por que pagar contribuição ao FGC sobre valores que não estão garantidos? Essa circunstância reforçaria a possibilidade de que cada investidor indireto poderia se aproveitar individualmente do valor máximo da cobertura.
Ocorre que a natureza da cobertura do FGC é a mutualidade, não o seguro. Voltemos na história. O primeiro garantidor de depósitos, instituído em 1829 em Nova Iorque, teve sua proposta de criação expressamente justificada com base nas regras aplicáveis aos mercadores “hong”, do sistema de comércio do Cantão (atual Guangzhou, China) que vigorou entre 1757-1842. Tais mercadores eram os únicos chineses da região autorizados a comercializar bens com os estrangeiros, e, em razão de partilharem esse privilégio comum, a regulação imposta a eles determinava que pudessem ser exigidos reciprocamente, uns pelas obrigações dos outros. Qualquer comerciante, então, poderia ser responsabilizado por uma dívida de qualquer outro mercador. Daí a mutualidade.
A dinâmica moderna do FGC é análoga. Os bancos contribuem para o FGC com um percentual dos seus depósitos – não em contrapartida a uma garantia fornecida, mas sim pelo privilégio de fazerem parte do sistema bancário, que o FGC ajuda a proteger com a sua atuação. O business do FGC não é, então, oferecer seguro: é fomentar a confiança. Se fosse puro seguro, por que o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal precisariam contribuir? Afinal, legalmente são impedidos de quebrar, e sabem de antemão que jamais terão um centavo sequer coberto pelo FGC.
O mesmo questionamento poderia ser aplicado em relação aos maiores bancos privados, cuja eventual quebra o FGC não teria recursos para amparar. Assim, o único fato que explica que esses bancos grandes contribuam para o FGC é que o fazem não para ter seus depósitos garantidos, mas para fortalecerem a confiança no sistema bancário do qual fazem parte e da qual se beneficiam.
As finanças modernas são mesmo complicadas. Entender tudo isso faz parte do percurso intelectual que pode evitar os equívocos de bem-intencionadas decisões voltadas a expandir a cobertura do FGC, mas que ao fim e ao cabo só fazem contribuir para a redução da confiança pública no nosso sistema financeiro.
*Vicente Braga é advogado e mestre pela Direito GV/SP
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