Em um dos textos do livro ‘Prefácios e Entrevistas’, Monteiro Lobato foi entrevistado pelo jornal ‘O Radical’, em que prefaciou o artigo com o hilariante título de ‘Insultos ao Brasil’, em resposta à crítica de um jornalista do ‘Diário da Noite’, que condenou Lobato por ter falado mal dos trens da Central do Brasil e do tabu do separatismo. Reproduzo apenas a argumentação contra o ‘insulto’ de Lobato, em plena Era Vargas, ter criticado a Central do Brasil:
Em alarmadíssimo artigo no “Diário da Noite” de 13 do corrente alguém denunciou a “Geografia de Dona Benta”, publicada no ano passado, como livro deletério, separatista, “sintoma alarmante da desagregação subterrânea do Brasil”. E para documentação do alarma citou os trechos de maior gravidade, isto é, os mais insultantes para o Brasil. Nessa obra incrível, diz o articulista, encontramos diálogos como este:
— “Estou também vendo dois trens em marcha, um que vem do Rio e outro que vem de S. Paulo…”
— “Então feche os olhos antes que se choquem. Essa estrada diverte-se todos os dias em brincar de desastre de trens. É federal…”
Interpelado sobre esta acusação pelo repórter, Monteiro Lobato respondeu:
— Trata-se de um trecho em que Dona Benta mostra aos meninos as coisas de S. Paulo vistas ao longe, panoramicamente. Os dois trens apontados são da Central. O articulista do “Diário da Noite” acha tremendamente insultante para o Brasil que a velhinha conte aos netos o que essa estrada de ferro realmente é.Mas haverá neste país quem ignore que a Central ocupa o primeiro lugar entre todas as estradas do mundo em matéria de desastres? Que chegou à maravilha de num mês de não sei que ano conseguir o recorde de 32 desastres em 30 dias? Que a rubrica “Desastre da Central” se tornou permanente nos jornais? Que o povo traduz a E. F. C. B. como Estrada de Ferro Caveira do Burro?
E por que é assim? Resposta: porque é federal, como muito bem explicou Dona Benta. Unicamente por isso. Existe em todos os serviços públicos federais um mal secreto que governo nenhum tem conseguido corrigir. Não há brasileiro que por experiência própria desconheça tal calamidade crônica, velhíssima, irredutível agravada pela República Nova. O emperro burocrático, a falta de racionalização, a lentidão desesperadora do papelório, o descaso absoluto pelo público… Meu Deus! Haverá quem não tenha consciência da calamidade administrativa federal?
As estradas de ferro particulares, como a S. Paulo Railway ou a Companhia Paulista, porque não são federais, mostram-se modelares. A São Paulo Railway só teve um desastre em toda a sua existência — e isso ainda no tempo da Monarquia. Atravessou os 40 anos da República Velha e os seis da República Nova sem um só acidente. O último desastre da Paulista foi há tanto tempo que dele o povo já não guarda memória. Por quê? Porque não são federais. Federalizadas, cairiam no regime da Central, do desastre diário. Logo, a Central é o que é por ser federal.
Essa estrada tem hoje como diretor um dos homens de maior capacidade técnica e boa vontade do Brasil, o coronel Mendonça Lima. Mas pode Mendonça Lima corrigir os males crônicos da Central? Não. Por maiores que sejam os seus esforços, nada conseguirá fazer — porque a estrada é federal. Fosse particular, como a São Paulo Railway ou a Paulista, e ele a poria com tanta ordem, eficiência e segurança como a S. Paulo Railway ou a Paulista.
Dona Benta, pois, disse aos seus netos a verdade pura, e uma verdade do conhecimento do mundo inteiro. Mendonça Lima e todos os ex-diretores da Central devem, por experiência própria, estar acordes neste ponto: a impossibilidade de corrigir os defeitos da Central decorre unicamente de ser ela federal. O vício da “federalice” é irredutível, por maior que seja a competência e boa vontade dos diretores de serviços.Não há nenhum insulto ao Brasil no fato de uma vovó contar aos netos o que é e todos os adultos sabem. Insulto ao Brasil é a Central e todos os outros serviços públicos federais serem o que são. Não será mentindo às crianças que consertaremos as nossas coisas tortas. Sim, consertando as coisas tortas. Insulto ao Brasil é o governo conservar a nossa maior estrada como perpétua detentora do recorde da desastralidade (LOBATO, Monteiro. Prefácios e Entrevistas: Ed. Brasiliense, 1951, p. 249-251).
Numa análise mais detalhada do panorama ferroviário brasileiro vemos promessas, planos grandiosos, projetos magníficos, mas ferrovias que é bom, só no acanhado andar do jabuti.
Quando visitamos o site da Valec (empresa pública ligada à ANTT), ficamos sabendo por uma de suas releases a vinda ao Brasil de uma autoridade chinesa para o lançamento das obras de um trecho de construção da ferrovia norte-sul em Tocantins. Disse Lu Chunfang que apenas em 2009 estavam previstos 5.600 km de linhas ferroviárias novas na China. Note bem: em apenas um ano! Em 2010, a China seria a segunda potência ferroviária do mundo com mais de 100 mil km de ferrovias. (http://www.valec.gov.br/clipping2009/20090912-1.htm). E o que aconteceu no Brasil?
Bem, “em maio de 2007, o presidente Lula inaugurou o trecho Aguiarnópolis-Araguaína, no Tocantins, com 146 km de extensão. Em dezembro de 2008, Lula inaugurou mais 94 km da Norte-Sul, relativos ao trecho entre Araguaína e Colinas do Tocantins. Os 132 da Ferrovia, entre Colinas e Guaraí também já estão prontos. Para o trecho de 150 km entre Guaraí e o pátio de Palmas/Porto Nacional, a previsão de conclusão das obras é maio de 2010”… (http://www.valec.gov.br/situacao.htm).
E agora, esse governo, em ritmo de jabuti manco anunciou um espetacular plano de investimentos de 57,7 bilhões de reais em ferrovias entre 2010 e 2013. (http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100722/not_imp584443,0.php). Alguém acredita nesse conto da carochinha?
Mas a maior perplexidade é a do trem-bala ligando Campinas-SP-Rio. O governo falou em investir 33 bilhões de reais em uma linha que será explorada por meia-concessão. O que significa isso? O governo entra com o dinheiro, o consórcio constroi e se retira, e o concessionário (uma associação forçada entre governo e capitais privados) explora e a mantém pelo prazo do contrato.
A hipótese do trem-bala se autofinanciar está afastada, por cálculo simples. O investimento de 30 bilhões exigiria uma rentabilidade mínima de 1% ao mês: 0,5% para pagar juros (6% ao ano) e 0,5% para amortizar o capital emprestado e as despesas operacionais. Isto somaria 300 milhões/mês. Cobrando a tarifa de 200 reais por passageiro significa transportar 1,5 milhão de pessoas /mês. Obviamente não existem essas pessoas e, portanto, o governo teria que entrar com dinheiro sem retorno.
Assim, a exploração deverá ser feita por empresa especialmente criada para a ocasião, que poderá ser um consórcio de empreiteiras. Pelo que se deduz do plano, dos 33 bilhões, o governo entraria com uns 20 bi sem retorno, e os vencedores da licitação com o resto, sabendo-se de antemão que o BNDES vai estar disponível e que os bancos europeus financiam a compra de equipamentos, se – bem entendido – os equipamentos forem europeus, não faltando os chineses na corrida para vender seu know-how na contrapartida de emprestar seu dinheiro.
Então tudo se passa como no velho esquema. As construtoras se reunem, calculam o valor da infraestrutura e pimba, multiplicam por três. Ganham 2 terços e repassam a “conta” para a operadora estatal que também vai dar calote, já que a despesa é irrecuperável e temos a história estatal brasileira como prova dos “direitos adquiridos” em calotes. Eles pegam o dinheiro do governo e, com o lucro astronômico, pagam os financiamentos internacionais da maquinaria ferroviária e ainda sobra um bocado. E como o governo quer vencedor da licitação o que apresentar a menor tarifa, no teto de R$ 0,49 por km (o que dá aproximadamente 200 reais Sampa-Rio), é possível que o negócio fique a preço de passagem de ônibus-leito no mesmo trajeto.
Mas tem mais: como o governo vai impor um limite de desembolso no projeto se este sequer existe? Quantas pontes serão construídas, quantos viadutos, quantos túneis, quantos ramais, quantos pátios de manobras, que tipo de sinalização e vigilância eletrônica será implantado, como será o isolamento da linha para permitir segurança em alta velocidade? Como garantir a segurança para alta velocidade em um país onde a propriedade pública é depredada sem cerimônia? Bem, para que se possa riscar todos os itens que compõem um projeto, ele tem que ser fabulosamente lucrativo, não é mesmo? Com a mão na grana todo o resto se arruma, segundo o pensamento político tão zelosamente consagrado nas esferas governamentais.
Será que dá para acreditar? Não será uma mise-en-scène só para produzir resultados eleitorais? Como se pode acreditar em um governo que quase nada fez pelas ferrovias em 8 anos de mandato e que agora, alucinadamente, no apagar das luzes, puxa da gaveta ferrovias que vão de Ilhéus a Rondônia, do Rio de Janeiro ao Acre, de Belém a São Paulo? (http://www.valec.gov.br)
Será que o trem-bala é uma prioridade nacional? Considerando que os fretes rodoviários do Centro-Oeste estão custando 40% do valor da soja comercializada, será que Brasília, plantada em pleno cerrado, não se dá conta do que deve ser feito debaixo do seu nariz?
Por último, aparece um componente inserido no contexto que seria estranho se não fosse cômico. A viabilização da concessão será feita por uma nova empresa estatal que já veio até com o nome: ETAV (Empresa de Transportes de Alta Velocidade). A ETAV será uma Petrobras do trem-bala. O governo detém 33% do capital votante já entrando com 3,4 bi no ato da fundação. Como se vê, uma oportunidade para aparecer outro Daniel Dantas com uns trocados e sair com uns milhões.
Mas qual a razão de uma empresa mista, se a exploração poderia ser feita por uma empresa privada, se já existe a Valec para a regulamentação? Ora, mas então o contribuinte não enxerga? Será que não desconfiou ainda? Se um consórcio constroi, fornecedores implantam, a Valec regulamenta, o leitor não percebeu que falta alguma coisa que só uma estatal sabe fazer?
Quem é que vai definir o cardápio do carro-restaurante, quem é que vai escolher o uniforme dos funcionários, quem é que vai selecionar o tipo de cortinas, o revestimento dos assentos, a decoração das estações e tantas coisas mais? Ora, convenhamos, só mesmo uma empresa estatal para resolver essas complexidades.
E a massa de cabos eleitorais esfrega as mãos de faceira com os novos empregos públicos em plena vertigem eleitoral. Vem aí mais uma Estrada de Ferro Caveira de Burro, agora com promessa de alta velocidade. E Dona Benta ressuscitará das trevas para dizer aos netinhos o supremo insulto: “fechem os olhos, esta estrada diverte-se todos os dias em brincar de desastres de trem.” Agora em “alta-velocidade”, podemos acrescentar.
No final do artigo ‘Insultos ao Brasil’, depois de tantas argumentações sobre a doença brasileira, Lobato arremata:
“Temos deveres para com o futuro. Já que não soubemos ou não pudemos consertar as coisas tortas herdadas, tenhamos ao menos a hombridade de não iludir nossos filhos. ‘Falhamos – deve ser a nossa linguagem. Não pudemos corrigir os erros vindos de trás. Não pudemos conseguir um bom governo. Não pudemos endireitar a Central – nem o Departamento Nacional de Produção Mineral [Nota: por ter enterrado o projeto de extração de petróleo privado nos anos 30, como enterramos agora o pré-sal]. Mas vocês, que vão constituir o Brasil de amanhã, sabem disso, enfronhem-se desde já das mazelas vigentes; e quando virarem adultos tratem de fazer o que a nós não foi possível. Tratem de consertar o Brasil, pois do contrário sofrerão ainda mais do que nós. Males que se agravam progressivamente tornam-se cada vez mais dolorosos.
O doente que admite estar doente e vai ao médico, pode sarar. Mas o doente que nega, que esconde, que enfeita a sua doença, esse não escapa. Tenhamos a nobre coragem de admitir nossas doenças – e estaremos a meio caminho da cura” (p. 257).
Sossega, Lobato: a praga da estatização está de volta e não tem cura. É a maior doença do país e vai levar ao desperdício a carona que pegamos no trem-bala do fabuloso crescimento asiático. O Estado ficará de um tamanho tal que vai engolir todos os recursos da Nação. Depois disso, vêm a volta da inflação e dos déficits públicos gigantes. Não se sabe em quanto tempo nem em quantos governos. Tudo depende do cronograma final entre aquilo que o governo mente que vai fazer e aquilo que realmente faz de errado. Mas certamente será o legado da Era Lula. O modelo político garante a supremacia daquele partido que comete os mesmos erros do passado e depois fala que “somos o país do futuro”.
Segundo o OESP (25/7/2010), o investimento previsto para o trem-bala daria para construir 300 km de metrô. Bem, metrô se paga, descongestiona o trânsito de veículos, agiliza e beneficia a produtividade do cidadão. É o que deveria ter São Paulo nos dias atuais e não os meros 62,3 km existentes. Mas isso é outra história.
Conforme essa mesma reportagem, os arautos do trem-bala prometem uma viagem de São Paulo ao Rio de Janeiro em 1h35min. Então tá: quer dizer que um funcionário (destes que recebem generosamente transportes subsidiados, bem-entendido) que estiver trabalhando nas imediações da Estação da Luz, em SP, poderá residir no Rio de Janeiro e chegar em casa antes daquele seu colega que mora no Morumbi, em Interlagos ou Alphaville? Aí já não dá para esquecer o mesmo Lobato que dizia que o Brasil deveria importar inteligência. Pelo jeito, de burros não temos só a caveira.
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