Uma fábula clássica da moderna democracia ocidental, sempre citada para definir a importância da Justiça na defesa da cidadania, é a do moleiro que, segundo texto de François Ardrieux (1759-1833), teria desafiado o rei da Prússia, Frederico II, déspota dado como esclarecido. Ele teria resistido à proposta real de compra de seu moinho em Sans-Souci (sem preocupação) e, diante de uma ameaça de desapropriação pelo monarca, retrucou: “Isso seria verdade se não houvesse juízes em Berlim”. O rei recuou e, segundo registros dos livros de teoria do respeito ao Direito, o moinho existe até hoje.
O Estado de Direito, instituído pela Constituição de 1988 no Brasil, tem com que se preocupar: em uma semana, a 10 de abril, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidirá se manterá ou abolirá a jurisprudência que autoriza, depois de três votações em 2016, a decretação do começo do cumprimento de penas por condenados em segunda instância, ou seja, em decisão colegiada. Entre nós, o início do cumprimento de pena logo após o chamado segundo grau era a regra, em razão de os recursos especial e extraordinário não serem dotados de efeito suspensivo (capacidade de suspender o cumprimento da decisão objeto do recurso). Em 2009, no julgamento do habeas corpus n.º 84.078, o STF decidiu pela inconstitucionalidade desse instituto. Em 2011, a Lei n.º 12.403 alterou o artigo 283 do Código de Processo Penal, adequando-o ao entendimento da Corte, de modo a permitir a prisão para fins de cumprimento da pena somente após o trânsito em julgado da condenação. A jabuticaba foi adotada quando os chefões da política passaram a ser apenados na Ação Penal 470, vulgo mensalão, levando o STF a adotar a interpretação falaciosa de que o princípio constitucional previsto no artigo 5.º, inciso LVII, que preceitua que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, proíbe a prisão, que não é e está longe de ser explicitada nele. Isso inspira quem quer mudar a atual jurisprudência.
Um dos adeptos mais ardorosos da causa, o ministro Marco Aurélio Mello disse à repórter da Globo News Andrea Sadi que prevê sua vitória. E o que poderia reverter sua previsão seria a possibilidade de haver no STF pelo menos seis juízes, o suficiente para mantê-la.
Mas o currículo de seus membros indica um número reduzido de magistrados entre seus componentes. É notório, por exemplo, que o presidente, Dias Toffoli, nem sequer conseguiu ser juiz de primeira instância, tendo sido reprovado em dois concursos. Antes de alcançar o topo, ele foi assessor do Partido dos Trabalhadores (PT) na Assembleia Legislativa de São Paulo e na Câmara dos Deputados e advogado-geral da União na gestão de Lula.
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O decano (ministro mais antigo) há 12 anos, Celso de Mello, foi membro do Ministério Público de São Paulo antes de ser nomeado para a mais alta Corte por José Sarney, do PMDB, hoje MDB, por indicação do então ministro da Justiça, Saulo Ramos, que não guardou dele boas recordações.
O citado Marco Aurélio Mello é juiz de origem, mas não por mérito garantido por concurso público, e sim pela influência do pai, Plínio Affonso Farias de Mello. O prestígio deste era tal nos sindicatos patronais fluminenses que o último presidente do regime militar, João Figueiredo, engavetou sua nomeação para o Tribunal Regional do Trabalho no Rio de Janeiro por um ano até ele completar os 35 anos exigidos. Dali foi guindado ao Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília, mercê do poder paterno, e ao STF pelo primo Fernando Affonso Collor de Mello.
Gilmar Mendes foi procurador da República de 1985 a 1988, adjunto da Subsecretaria-Geral, consultor jurídico da Secretaria-Geral da Presidência, subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil e, como seria Toffoli depois, advogado-geral da União, do tucano Fernando Henrique Cardoso, que o indicou para o STF em 2002.
Cármen Lúcia Antunes Rocha foi procuradora do Estado de Minas Gerais até ser levada ao ápice da carreira por Lula. Também indicado ao STF pelo chefão petista, Ricardo Lewandowski foi advogado antes de ser secretário do prefeito peemedebista de São Bernardo Aron Galante, que o indicou a Orestes Quércia, que o guindou ao Tribunal de Alçada, passando com a extinção deste para o Tribunal de Justiça.
Juíza concursada na Justiça trabalhista, Rosa Weber passou pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4.ª Região e, nomeada por Lula, pelo Tribunal Superior do Trabalho, de onde Dilma Rousseff a elevou à Corte mais alta. Edson Fachin foi advogado e procurador jurídico do Instituto de Terras, Cartografia e Florestas do Estado do Paraná e procurador-geral do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, de que foi para o STF. Luiz Fux foi advogado da Shell e juiz de carreira, passando pelo Superior Tribunal de Justiça e daí para o atual posto. O professor Luís Roberto Barroso dirigiu uma banca de advocacia milionária. O célebre cliente Cesare Battisti não lhe pagou honorários, mas o apresentou a quem o ajudou a subir até o pináculo do Judiciário. Ele e Fux foram indicados pela ex-presidente.
Alexandre de Moraes pertenceu a um grupo de procuradores que fizeram carreira na administração pública paulista no longo mandarinato tucano, que sobrevive à falência do partido do ponto de vista federal. Na política pretendeu candidatar-se ao governo de São Paulo pelo PSDB, mas alcançou o Ministério da Justiça e o STF por obra e graça do MDB de Temer, Jucá, Renan e Cunha.
Como se vê, há apenas três juízes, dois concursados e só um da Justiça comum, entre os 11 que decidirão se o Brasil voltará à singularidade absurda da perpetuação da impunidade de criminosos dados como tal em segunda instância. A cúpula de nosso Judiciário não é do mesmo escopo dos juízes de Berlim, aos quais o moleiro de Sans-Souci recorreu para despertar o que havia de esclarecido no déspota prussiano.
Fonte: “Estadão”, 03/04/2019