“Blindados da Marinha entraram na Vila Cruzeiro. A população não acreditava. Pessoas saíam de casa espantadas. Começaram a tirar fotos, vinham agradecer, como se tivessem sido libertadas” (Ricardo Machado, sargento do Bope). As pessoas foram, de fato, libertadas do poder tirânico, opressivo, do crime organizado. As bandeiras do Brasil e do Rio de Janeiro, fincadas no cume do Complexo do Alemão, simbolizam a soberania do Estado. Do gesto inicial emana a imensa expectativa de consolidação de uma ordem legítima, baseada nos direitos de cidadania.
“Isso vai demonstrar que o Brasil tem responsabilidade e que está resolvendo seus problemas para ter grandes eventos” (Nelson Jobim, ministro da Defesa). As pessoas almejam direitos; Jobim, um homem do Direito, só tem olhos para a imagem externa do País. O ministro da Defesa não possui o dom de iludir típico dos políticos profissionais. Falastrão, ele vocaliza a lógica de um Estado que despreza os direitos das pessoas comuns. A Copa e a Olimpíada passam, a vida segue. Será a operação no Rio uma nova farsa, apenas maior que tantas anteriores?
“(…) ao invés de imitarmos a população estadunidense que deu apoio às tropas que invadiram o Iraque contra o inimigo Saddam Hussein e, depois, viu a farsa da inexistência de nenhum dos motivos (sic) que levaram Bush a fazer tal atrocidade, devemos nos perguntar: qual é a verdadeira guerra que está ocorrendo?” (José Cláudio Souza Alves, pró-reitor de Extensão da Universidade Rural do Rio de Janeiro). O pró-reitor, que escreve como eu toco piano, representa a visão clássica do brizolismo. Num longo texto, ele até sugere indagações pertinentes, mas as enterra sob os escombros do populismo. Qual é a “verdadeira guerra”? Eis a sua resposta: “(…) quando restar o Iraque arrasado sempre surgirá (sic) o mercado financeiro, as empreiteiras e os grupos imobiliários a vender condomínios seguros nos Portos Maravilha da cidade.” Se o Estado veicula apenas, sempre e necessariamente, os interesses do poder econômico, ele deve ficar fora dos morros. Um quarto de século atrás, Leonel Brizola abandonou as favelas do Rio ao crime organizado. A abdicação territorial correspondeu a uma mutação no léxico político.
“O Morro da Favella, até então denominado morro da Providência, passa a emprestar seu nome aos aglomerados de casebres sem traçado, arruamento ou acesso aos serviços públicos, construídos em terrenos públicos ou de terceiros (…)” (Licia Valladares, socióloga). Favela, como substantivo genérico, insinuou-se nas páginas da imprensa na segunda década do século passado. O termo passou a definir uma “cidade ilegal”, por oposição à “cidade legal”. A sua referência era o direito de propriedade – ou melhor, a violação dele no processo de expansão da mancha urbana. Mas a palavra nada dizia sobre os habitantes da “outra cidade”. Foi com a intenção de dizer muitas coisas sobre eles que se promoveu a substituição da “favela” pela “comunidade”.
“(…) quando os habitantes das Ilhas Shetland mencionam a sua comunidade, eles se referem a uma entidade, uma realidade investida de todo o sentimento ligado ao parentesco, à amizade, à vizinhança, à rivalidade, à familiaridade, à inveja, que informam o processo social do cotidiano. Nesse nível, comunidade (…) articula-se crucialmente à consciência.” (Anthony P. Cohen, antropólogo). Comunidade, no lugar de favela, coagula um projeto político: a atribuição de uma “cultura” singular aos habitantes das favelas. Obra coletiva de lideranças políticas, intelectuais, administradores de ONGs e chefes do crime organizado, o projeto equivale a uma demanda de autonomia. A “comunidade” tem direito a representação – ou seja, a intermediários que, em nome dela, dialogam com o Estado. O crime organizado territorializou seu poder sob o escudo dessa doutrina encantatória.
“É uma estratégia sensacional e inovadora, que coloca o Rio na vanguarda” (coronel Hudson Miranda, comandante da PM, 2005). Miranda comemorava a aquisição de um helicóptero, para desembarcar policiais no alto dos morros, e a instalação de uma torre no Complexo da Maré, para visualizar as favelas de uma posição elevada. O coronel da PM é o polo simétrico e complementar dos intelectuais ongueiros que celebram a “comunidade”. Os dois polos rejeitam a presença perene da ordem estatal nas favelas. O primeiro organiza “invasões”, os segundos preconizam a “autonomia”. Ambos enxergam os morros como terra estrangeira: o “Iraque”, pecaminoso ou virtuoso, do pró-reitor brizolista.
“Sem dúvida, os arrastões têm relação com reconquista de território e com a nova política de segurança pública do Rio” (Sérgio Cabral, governador do Rio de Janeiro). É mesmo? Não há indícios reais dessa relação, proclamada por uma figura que jamais consegue descer do palanque. De qualquer modo, o fracasso de um modelo de convivência pacífica entre as UPPs e o poder paralelo do crime empurrou Cabral para o enfrentamento. Mas permanece intocada a fonte do modelo de convivência: a imbricação entre o Estado e o crime organizado, cuja expressão mais óbvia é a polícia bandida que contamina o aparato oficial de segurança pública.
“O modelo do tráfico armado, sustentado em domínio territorial, é atrasado, pesado, antieconômico: custa muito caro manter um exército, recrutar neófitos, armá-los (nada disso é necessário às milícias, posto que seus membros são policiais)” (Luiz Eduardo Soares, ex-secretário Nacional de Segurança Pública). Soares caiu porque pretendia reformar as polícias, extirpando a polícia bandida. Ele aponta o risco de transição para uma nova ordem, baseada no poder das milícias. Uma ordem sem direitos serviria aos “grandes eventos”, não à população dos morros. Nessa triste hipótese, as bandeiras que tremulam no Alemão seriam reduzidas ao estatuto de panos costurados: os disfarces de um Estado criminoso.
Fonte: O Estado de S. Paulo 09/12/2010
é do magnoli… na boa… nao vale a pena ler
Falou, falou e não disse nada!