Tive irmãos gêmeos idênticos e ouvi à exaustão que seus destinos eram parecidos. E o pior é que isso acontecia porque eles foram criados como uma só pessoa. Para nós, os adultos salientavam a diferença, mas os gêmeos estavam subordinados à lógica que os tomava como um paradoxo pois, na hierarquia da casa, os dois ocupavam um só lugar.
Eles chamavam atenção pela semelhança e usavam isso para algumas malandragens que só os que gozam da duplicidade recebida ou planejada podem realizar. Cansaram de enganar professores e namoradas, deleitando-se quando a vítima exigia saber quem era quem.
Era deles o uso de dois pesos e medidas tão trivializado neste nosso Brasil de mensalões, hiperpublicidade e ética dupla. Quando se diz uma coisa, mas se faz outra. Vivemos também na época do gato por lebre. Do bandido condenado que passa por herói e julga o tribunal. Temos hoje uma clara duplicidade entre um público interno e um outro, externo; exatamente como ocorria na ditadura militar.
Voltemos aos gêmeos. Um dia, um deles brigou com um garoto no colégio e prometeu “pegá-lo na rua”. A ameaça de apanhar depois da aula, no espaço anônimo da rua, era aterrorizante. E foi com os olhos esbugalhados de medo que o menino apanhou de um dos gêmeos somente para dois quarteirões adiante encontrar o mesmo menino que o havia surrado esperando-o para repetir a dose! Era o irmão duplicando o outro. Recriando no plano da “inocência infantil” — desmascarada por Freud — uma fabulosa ubiquidade. Essa ubiquidade a que a propaganda governamental nos sujeita e surra diariamente.
A duplicidade faz parte da nossa estrutura dotada de um lado consciente e capaz de entender as consequências do que fazemos; e de um lado inconsciente que tem outros projetos e desejos.
Todo desvio inventa uma máscara. Todos os super-heróis americanos sofrem da síndrome da dupla personalidade. No Brasil, o Batman e o Super-Homem seriam processados por falsidade ideológica. No Brasil, onde não existem super-heróis, mas abundam as celebridades, todos pagamos um alto preço por usar uma única mascara, pois existem muitas a serem usadas.
As ditaduras e os fundamentalismos induzem à duplicidade. Para o crente, haverá sempre uma verdade oculta ou essencial que o outro não vê.
Um pai não pode ser amante de um filho ou de uma filha. A menos que crie um duplo. Raposas não podem vigiar o galinheiro e é justamente essa confusão que jaz na base do incesto, da pedofilia e, nas democracias liberais, da corrupção oficial, realizada por governantes eleitos, logo escolhidos. Numa brilhante entrevista à revista “Playboy”, Salvador Dalí fala de um irmão que morreu e como ele se confundia com o falecido e a ele atribuía seus erros.
As utopias fundamentalistas (que não podem ser confundidas com ideais de vida difíceis de implementar, mas sujeitos a crítica) facilitam a confusão entre meios e fins. “Essa será a guerra que vai acabar com todas as guerras!”, dizem. O duplo aparece sempre relacionado a uma luta final que vai consertar o mundo ou arrumar uma vida. Não é fácil viver com frustrações e admitir que o mundo jamais vai ser perfeito, pois, se assim ficar, a humanidade seria dispensável. Lutar pela igualdade é um dever, mas ela não justifica a violência nem a desonestidade rasteira e planificada.
A duplicidade serve tanto às utopias quanto para racionalizar o crime planificado e o golpe político, como infelizmente é comum e decepcionante no Brasil.
Temos agora o descaramento do sr. Pizzolato (anos se preparando para o golpe claramente planejado e a fuga realizada por meio de um irmão morto!); de quebra, tivemos o caso patológico do José Dirceu. Em seguida descobrirmos a farsa do desaparecimento de Rubens Paiva, montada pela ditadura militar. A duplicidade recorre onde não existe uma ética de sinceridade.
Há uma óbvia relação entre a duplicidade e os projetos políticos autoritários, avessos a oposição. A duplicidade inventa o que Merval Pereira bem identificou como a dupla personalidade de alguns meliantes da política.
Mas resta discutir, como fiz no meu trabalho, a segmentação esquizoide entre a casa e a rua a bloquear a sinceridade e a transparência no Brasil. A democracia é incompatível com as duplicidades patológicas da vida pública.
O duplo diabólico (o que é, afinal, o diabo senão um duplo negativo de Deus?) é recorrente na reflexão ocidental. Ele foi elaborado na Inglaterra moderna por Robert Louis Stevenson, em 1886, no livro “O estranho caso do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde” e por Oscar Wilde, em 1890, no romance “O retrato de Dorian Gray”. No Brasil, em 1899, Machado de Assis escreveu um “Esboço de uma nova teoria da alma humana”, um conto que fala de almas duplas, mas foi Freud que, ao elaborar uma teoria do inconsciente como o grande oceano a ligar tudo com tudo quem colocou em xeque o voluntarismo e a crença individualista do controle consciente.
Não vou falar em Cervantes ou em Fernando Pessoa. Ambos demandariam muito espaço. Basta lembrar que Pessoa inventou três poetas os quais, além de si mesmo, tiveram uma obra e uma vida ao lado da sua!
Numa sociedade onde os amigos têm tudo e os inimigos ficam com a lei, penso que é muito complicado aceitar um mínimo de coerência entre esses duplos que surgem ferozes e impacientes a cada dia e em cada ciclo que tentamos desvendar.
Fonte: O Globo 12/2/2014
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