“Saúde não é mercadoria. Vida não é negócio. Dignidade não é lucro”, afirmou a ministra Cármen Lúcia, presidente do STF, ao suspender a resolução da ANS sobre coparticipação em novos contratos de planos de saúde.
Isso que dá ministros do STF se tornarem celebridades da TV. Começam a falar banalidades fofas e frases de efeito só fortalecerem a aura de santidade e ganharem elogios na internet.
É claro que saúde é mercadoria –e Cármen Lúcia sabe muito bem disso. Quando precisa de um médico, ela não recorre a uma ONG de médicos que trabalham de graça, a um hospital público ou a um curandeiro sem fins lucrativos, mas a gente que oferece saúde em troca de um bom cascalho.
Sem a ambição de médicos e negociantes, de grandes laboratórios e empresas listados na Bolsa, Cármen Lúcia não conseguiria tratar nem sequer uma apendicite.
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Três entre milhares de exemplos:
– A ultrassonografia médica, que entre outras coisas salva milhares de bebês ao detectar malformações de forma rápida e barata, surgiu nos anos 1980 durante uma corrida tecnológica travada por grandes empresas de tecnologia. A Acuson saiu na frente –em 2000, foi vendida por 700 milhões de dólares para a Siemens, que hoje divide o mercado com GE e Philips.
– Até 1989, quem tivesse problemas de estômago precisava fazer como Nelson Rodrigues: “alimentar a úlcera” com mingau durante a madrugada. Tudo isso se resolveu com a invenção do omeprazol pelo laboratório Astra AB, hoje parte do AstraZeneca, o maior conglomerado farmacêutico do mundo.
– Em favelas, periferias e ao redor de terminais de ônibus, clínicas populares atraem pobres cansados da fila e do mau atendimento do SUS. Cobram desde 80 reais por consultas sem fila e com direito a retorno.
É verdade que a saúde é um bem essencial à dignidade –por isso mesmo deve ser tratada como uma mercadoria. Não convém confiar uma atividade tão fundamental somente à bondade e ao altruísmo.
A possibilidade de lucrar resolvendo problemas alheios costuma alinhar o egoísmo ao altruísmo. Como um professor escocês de filosofia moral nos ensinou no século 18, o lucro é um incentivo a mais para que as pessoas se dediquem a solucionar problemas de desconhecidos.
É interessante imaginar um mundo em que saúde não fosse mercadoria. Nada de equipamentos e remédios inovadores, já que, se “dignidade não é lucro”, não seria possível lucrar nessa área. O número de médicos despencaria –do que adiantaria estudar tantos anos para ganhar o mesmo que um cobrador de ônibus?
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A saúde no Brasil precisa ser tratada mais como mercadoria e menos como um direito sagrado. Está submersa num lodaçal de regulações que criam reservas de mercado, barreiras de entrada a concorrentes e incentivos perversos a pacientes, hospitais e planos de saúde.
O país exige a presença de médicos até para um simples exame de vista. Conselhos de medicina têm muitas semelhanças com cartéis: fixam preços e proíbem anúncios, promoções e descontos. E o famigerado controle de preços ocorre sem controvérsia nos planos de saúde –como no tabelamento dos tempos do Sarney, o resultado é o desabastecimento de planos para pessoa física.
Serviços de saúde são regidos pelo lucro e pela lei da oferta e procura –e sempre será assim, por mais bonitas que sejam as frases de efeito da presidente da Suprema Corte.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 18/07/2018