Diante de um cenário de agravamento da pandemia do coronavírus, com o mercado derretendo e o câmbio sofrendo forte desvalorização, muitos começaram a questionar o esforço de ajuste fiscal que vem sendo promovido no Brasil.
Propostas de abandono da agenda de reformas estruturais e de revogação do teto de gastos ganharam bastante repercussão no debate público.
Acredito que o combate ao coronavírus e aos seus efeitos econômicos e sociais é totalmente compatível com a manutenção de uma política fiscal responsável. Primeiro, para qualificar melhor esse debate, olhemos a situação fiscal da União e do setor público brasileiro.
Em 2019, o governo central terminou o ano com um déficit primário de R$ 95,1 bilhões (1,3% do PIB), sendo que o superávit primário deve retornar somente em 2026 (na casa de 0,2% do PIB).
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Quando analisamos a performance em 2019 do setor público consolidado, que inclui o governo central, estatais e os entes subnacionais, notamos também a existência de déficit primário de R$ 61,9 bilhões (0,85% do PIB) além de um déficit nominal, que inclui pagamento de juros, de R$ 429,2 bilhões (5,9% do PIB).
Nesse cenário, não é surpresa que a DBGG (Dívida Bruta do Governo Geral) venha crescendo, saindo de 56,28% do PIB em 2014 para 75,77% do PIB em 2019, patamar bem elevado para um país emergente como o Brasil.
Como podemos inferir a partir dos dados acima, a situação fiscal do Brasil ainda é bem frágil.
Importante notar, entretanto, que apesar da fragilidade fiscal descrita acima, notamos, desde 2016, algum grau de melhora das contas públicas fruto do ajuste fiscal que vem sendo buscado desde então.
O resultado primário do governo central, por exemplo, melhorou 1,26% do PIB desde 2016 até o fim do ano passado. O déficit do setor público consolidado também melhorou em 1,63% do PIB no mesmo período. Por fim, o déficit nominal do setor público consolidado diminuiu em 3% do PIB, muito em função da diminuição da conta de juros.
É verdade que muito dessa melhora é resultado de cortes de despesas discricionárias e entrada no caixa do Tesouro de receitas extraordinárias, advindas de concessões de campos de petróleo e crédito recuperado junto ao BNDES. Os gastos obrigatórios, por sua vez, continuam crescendo. Não é o ajuste fiscal ideal, mas a melhora é clara.
É importante continuar nesse caminho.
Mas e o coronavírus? É possível combatê-lo de modo eficaz ao mesmo tempo em que é mantida uma política fiscal responsável?
Acredito que sim.
Um caminho para achar esse equilíbrio é a manutenção das reformas estruturais em gastos obrigatórios do governo, como a despesa com pessoal, a qual corresponde a aproximadamente 4% do PIB. Existe margem para reduzir esse gasto, elevado para padrões internacionais.
Os instrumentos para isso existem tanto no próprio teto de gastos quanto na PEC da Emergência Fiscal. Recursos poupados com diminuição de gastos com pessoal da União, por exemplo, poderiam ser realocados em políticas de combate ao vírus e aos seus efeitos nos mais pobres e vulneráveis.
No caso dos entes subnacionais, o mesmo vale para o funcionalismo estadual e municipal. Além disso, também temos a PEC do Pacto Federativo a qual descentraliza mais recursos para os entes subnacionais o que também pode ajudar no combate local ao vírus.
A própria reforma da Previdência recém-aprovada estabelece que alíquotas de contribuição extraordinárias podem ser implementadas para ajudar a cobrir o déficit do RPPS Federal. Novamente, mais espaço no orçamento federal poderia ser aberto com a implementação dessas alíquotas.
Para estados e municípios, é importante também o uso das alíquotas extraordinárias além da ampliação da base de incidência das alíquotas ordinárias, aumentando, assim, suas margens para gastos em outras áreas que não sejam a Previdência do funcionalismo local.
Dito isso, somente as reformas não irão resolver o problema. É preciso, no curto prazo, flexibilizar a política fiscal. Uma ampla gama de medidas podem ser adotadas para mitigar os efeitos do vírus na sociedade e na economia. Cito algumas delas:
*Desonerações e abertura de linhas de crédito para o setor produtivo.
*Facilitação de rolagem da dívida das empresas.
*Flexibilização da política monetária.
*Ampliação de políticas de proteção aos mais vulneráveis, como o Bolsa Família (mais de 70% dos recursos do Bolsa chegam no quintil mais pobre da população, sendo a maior arma de combate à miséria do Brasil)
*Antecipação do pagamento do seguro desemprego, de benefícios previdenciários e do abono salarial.
*Incremento de gastos com saúde.
*Transferência de recursos para os entes subnacionais.
Agora, para sustentar o aumento de gastos trazido pelas medidas acima (muitas já adotadas), não é preciso abandonar as reformas ou o teto.
O instrumento utilizado pode ser a abertura de créditos extraordinários via Medidas Provisórias (esses créditos não estão no escopo do teto de gastos)
Assim, mobilizam-se recursos para combater o vírus e suas consequências, ao mesmo tempo em que um importante pilar fiscal, o teto de gastos, é mantido.
Naturalmente, o déficit primário e o estoque de dívida tenderão a aumentar, porém, se essa flexibilização da política fiscal for temporária, não deverá pressionar os juros e o risco país.
Podemos sim ser eficientes no combate ao vírus sem radicalismo no campo fiscal!