A evolução vertiginosa dos acontecimentos relacionados ao combate sanitário e econômico ao coronavírus nas últimas semanas dificulta o entendimento de seus impactos de curto e longo prazo. Medidas inteiramente justificáveis em uma situação de calamidade pública, como a atual, misturam-se com propostas que podem colocar em risco o arcabouço fiscal e legal do país.
É importante, portanto, fazer um breve balanço da situação atual, e chamar atenção para problemas futuros que podem surgir caso o atual processo descoordenado de proposição e aprovação de medidas venha a persistir.
Como discuti na última coluna, diante da crise do coronavírus a reação do governo deve ser rápida e de grande magnitude. Primeiro, é preciso combater os efeitos da pandemia com elevação expressiva dos gastos em saúde e um esforço de guerra no sentido de mobilizar leitos de UTIs, respiradores e testes que possam ser aplicados em escala maciça.
Além dos esforços necessários para assegurar a proteção da saúde das pessoas, é necessário fazer todo o possível para protegê-las sob o ponto de vista econômico. Isso envolve o pagamento de auxílio financeiro aos trabalhadores informais e medidas que evitem o desemprego em massa de trabalhadores formais.
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Finalmente, é necessário um amplo conjunto de medidas para fornecer liquidez ao sistema financeiro e linhas de crédito para financiamento do capital de giro e da folha de pagamentos das empresas, assim como o diferimento de pagamento de impostos e contribuições.
O governo inicialmente reagiu de forma lenta e modesta, mas na última semana avançou de forma mais efetiva na direção apontada acima. Segundo a equipe econômica, serão destinados R$ 98 bilhões para o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 por três meses para trabalhadores informais, sancionado essa semana pelo presidente. Foi também enviada ao Congresso a MP 936/2020, que autoriza a redução salarial com diminuição proporcional da carga horária durante três meses, com faixas de 25%, 50% e 70%. Também está prevista a suspensão do contrato de trabalho durante um período de dois meses. O governo complementará a renda dos trabalhadores afetados, usando como base o valor do seguro desemprego, com impacto fiscal estimado pelo governo de R$ 51,2 bilhões.
Foi ainda anunciado um financiamento para pequenas e médias empresas pagarem suas folhas salariais por dois meses, com montante de R$ 40 bilhões, dos quais R$ 34 bilhões correspondem a um aporte de recursos públicos e o restante a crédito de bancos privados. Essa medida, no entanto, ainda não foi implementada.
O Congresso tem tido papel fundamental no sentido de propor e aprovar medidas de combate à pandemia. Em particular, sua atuação foi decisiva para a rápida aprovação de um substancial auxílio aos trabalhadores informais, elevando para R$ 500 por trabalhador o benefício de R$ 200 que constava da proposta inicial do governo, o que levou o governo a propor o valor final de R$ 600.
A Câmara dos Deputados também tem debatido a PEC do Orçamento de Guerra, cuja aprovação é necessária para conferir maior flexibilidade e segurança jurídica para a elevação de despesas associadas ao combate à pandemia, assim como para a criação de instrumentos que permitam que o Banco Central possa atuar de forma mais efetiva na provisão de liquidez ao sistema financeiro e de crédito para as empresas.
Embora o protagonismo do Congresso nesse momento de crise seja bem-vindo, existem alguns sinais preocupantes de que ele poderá ir além do que seria justificável no contexto atual de calamidade pública. Em particular, tanto na Câmara como no Senado, existe um número expressivo de projetos que podem ter impacto negativo na segurança jurídica e no ambiente de negócios, o que pode comprometer a recuperação econômica pós COVID-19.
Um exemplo é o PLP 34/2020, em tramitação na Câmara dos Deputados. Segundo sua ementa, esta proposição “institui um empréstimo compulsório para atender às despesas urgentes causadas pela situação de calamidade pública relacionada ao coronavírus (COVID-19)”. Segundo seu Art 2º, ficam sujeitas ao empréstimo compulsório as pessoas jurídicas domiciliadas no país com patrimônio líquido igual ou superior a um bilhão de reais na data de publicação desta lei. O Governo Federal fica autorizado a cobrar até 10% do lucro líquido apurado nos doze meses anteriores à publicação desta lei a título de empréstimo compulsório. Os valores devem ser restituídos no prazo de até 4 anos com correção pela taxa Selic a contar do fim da situação de calamidade pública relacionada ao coronavírus, “de acordo com a disponibilidade orçamentária vigente”.
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No Senado, vários projetos considerados prioritários para entrarem na pauta de votação podem ter implicações negativas para o ambiente de negócios. Dentre eles, o PLP 50/2020, que institui simultaneamente um imposto e um empréstimo compulsório sobre grandes fortunas, também sob o pretexto de atender a despesas extraordinárias decorrentes de calamidade pública. Segundo a proposição, o empréstimo compulsório difere do imposto sobre grandes fortunas por não se sujeitar à anterioridade anual, sendo cobrado já no exercício de 2020 e somente neste ano, com posterior devolução a partir de 2021 na forma de abatimento do imposto e remuneração pela TR.
Outro projeto considerado prioritário é o PL 1166/2020, que estabelece teto de juros de 20% ao ano para as modalidades de crédito ofertadas por meio de cartões de crédito e cheque especial para todas as dívidas contraídas entre março de 2020 e julho de 2021. Na mesma categoria de prioridade se encontra o PL 911/2020, que eleva a alíquota da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido de instituições financeiras para 50%.
Não cabe neste artigo uma análise exaustiva desses projetos, mas experiências no passado com empréstimos compulsórios, aumentos abusivos de impostos e tabelamento de juros tiveram consequências muito negativas para o crescimento econômico do país. Repetí-las nesse momento sob o pretexto de calamidade pública pode minar a recuperação econômica quando esta crise for superada.
Fonte: “Blog do IBRE”, 06/04/2020