Errar o diagnóstico é a forma mais fácil de preservar a doença. Experimente receitar um antibiótico para uma infecção viral ou extrair o apêndice de quem está com diverticulite. Na melhor hipótese, não vai ajudar. Se já é difícil nas ciências naturais, pior nas humanas.
A onda de protestos em vários países despertou um festival de explicações impressionistas, relações espúrias e análises ditadas pela inclinação ideológica. Nenhum caso é tão eloquente quanto o Chile, onde já houve 1420 presos, 84 feridos a tiros e pelo menos 11 mortos nas manifestações que tomaram as ruas desde sexta-feira.
Como no Brasil em 2013 ou no “Caracazo” venezuelano de 1989, os protestos começaram em virtude no aumento de 800 para 830 pesos nas passagens do metrô (por coincidência, pouco menos de 20 centavos de real). O governo cometeu o erro de reprimir o movimento de estudantes pulando a catraca e alimentou uma revolta em cadeia, disseminada pelas redes sociais.
Os chilenos se rebelam não apenas contra o custo do transporte, mas também da saúde e educação (ambas pagas), além do sistema de previdência. Como costuma acontecer nesse tipo de manifestação, o movimento que começou pacífico descambou para quebra-quebras, saques e violência. Não se sabe que fim terá.
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A convulsão social chilena tem sido atribuída ao fracasso do modelo econômico liberal adotado no país desde a ditadura do general Augusto Pinochet – mantido desde então por todos os governos, de direita ou esquerda. Argumenta-se que a desigualdade social foi a principal causa da eclosão da revolta. Têm sido também comuns críticas ao sistema chileno de aposentadorias, semelhante ao que o ministro Paulo Guedes gostaria de ter implantado no Brasil, tido como responsável até mesmo por um índice recorde de suicídios entre os idosos.
A grande dificuldade nesse tipo de explicação é que, quando não flagrantemente errada, ela costuma ser insuficiente. Como sabe qualquer um que tenha deparado na vida com questões complexas, dois fatos podem ser concomitantes, sem que um seja causa do outro. O aumento na desigualdade não significa necessariamente que seja ela a raiz da revolta. Nem que não seja.
É verdade que o Chile se tornou mais desigual ao longo da última década? Não, de acordo com a medida mais adotada pelos economistas, o índice de Gini. Em 2003, ele era de 0,51 no Chile (no Brasil, 0,56; na América Latina, 0,52). Em 2017, caíra para 0,45 (no Brasil, para 0,54; na América Latina, para 0,47). O Chile não é apenas menos desigual que México, Brasil, ou Colômbia, mas, a exemplo de Uruguai, Argentina e Equador, tem se mantido pouco abaixo da média continental.
A concentração de renda, ao contrário, cresceu. Em 2006, os 10% mais ricos da população ficavam com 31% da renda chilena. Em 2017, com 39%. É possível que haja aumento na concentração de renda no topo, mas queda na desigualdade na sociedade? Em teoria, sim, dependendo das taxas de crescimento econômico e da redução da pobreza. Por isso mesmo, a questão desafia análises simplistas.
Desde os anos 1980, a pobreza chilena caiu de 40% da população para abaixo de 10%. A inflação está sob controle, e o crescimento também se mantém acima da média latino-americana, embora tenha caído nos últimos anos com o estouro da bolha das commodities. Como ocorreu em 2013 no Brasil, a revolta chilena espelha muito mais uma percepção disseminada pelas redes sociais do que a realidade da economia, ainda que ela enfrente mesmo dificuldades.
A lenda urbana sobre o aumento de suicídios entre os idosos que ganham pouco é um ótimo exemplo de como a desinformação alimenta a revolta. Em 2016, o Chile estava na 118ª posição na lista dos países com maior taxa de suicídio na população acima de 70 anos, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Eram 15,4 para 100 mil habitantes, metade da média mundial, de 29,7.
Quanto às aposentadorias, os chilenos recebem em média 34% do salário de contribuição. É pouco, comparado aos 70% do Brasil, 72% da Argentina ou 87% da Índia. Mas é o mesmo patamar de Rússia (34%), Japão (35%), Estados Unidos (38%) ou Alemanha (38%). Está acima de Reino Unido (22%), México (26%) e Austrália (32%).
Atribuir ao regime de capitalização adotado no Chile a responsabilidade pela discrepância é simplesmente ignorar a aritmética. A contribuição do chileno para a aposentadoria é de 10% do salário. No Brasil, são 11% do funcionário, mais 20% do empregador. Se o brasileiro acumulasse todas essas contribuições numa conta, como faz o chileno, poderia receber mais que o triplo dele. A culpa da aposentadoria baixa não é, portanto, do sistema de capitalização, mas do nível de contribuição.
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Mas e as taxas extorsivas cobradas pelos fundos de pensão privados para administrar o dinheiro? Na realidade, elas estão entre 0,7% e 1,5%, padrão compatível com qualquer instituição financeira internacional. Querer pôr a culpa das baixas aposentadorias chilenas no lucro dos bancos é não entender o que é lucro nem o que é banco. Chilenos recebem menos porque contribuem menos e, mesmo assim, não estão tão distantes do padrão global.
A leitura ideológica apenas dificulta a análise de um movimento cujas raízes precisam ser estudadas a fundo. O Chile foi um dos maiores beneficiários da globalização, reorganizou sua economia em torno de exportações e adotou um modelo de desenvolvimento mais liberal, distinto de países como o Brasil, onde o Estado sempre assumiu o protagonismo.
Tal modelo também foi incapaz de cumprir as promessas feitas a uma classe média emergente que se acreditava na antessala do Primeiro Mundo? Também dá sinais de esgotamento? São questões que exigem respostas precisas, embasadas em fatos, não ideologia de botequim. Só assim será possível encontrar os remédios certos para o mal chileno.
Fonte: “G1”, 22/10/2019