O jornalista e ex-deputado federal Fernando Gabeira classifica o movimento dos caminhoneiros como uma “revolta difusa” contra “o que chamam de roubalheira” e “contra os políticos”. “Mas não tem uma visão do que colocar no lugar.” Para Gabeira, o movimento abre a chance de os brasileiros se unirem em torno da ideia de uma cultura, a retomada de um “sentimento de Nação”, sacudindo o “País de fantasia” na qual se encerraram políticos e elite burocrática. Em entrevista ao “Estado”, o jornalista aprofunda sua análise sobre o momento do País. Leia os principais trechos.
Estadão – Em seu artigo A falta que um governo faz, em “O Globo”, o sr. diz que a retomada de um sentimento de Nação pode sacudir a “ilha da fantasia” de Brasília. Por quê?
Gabeira – Eu acredito que é uma oportunidade, pois é muito difícil ver o país se desmanchando. Ficou claro o processo de ausência de uma ação do governo de antecipação, de informação de negociação no princípio. Depois ficou clara a vulnerabilidade do país. Eles criaram uma situação que tornou difícil até a intervenção das Forças Armadas.
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Estadão – Por que o sr. acha que apesar dos acordos anunciados pelo governo o movimento não parou?
Gabeira – Não parou porque a imprensa não está vendo o movimento em sua amplitude. A imprensa vê nele um movimento econômico, mas na verdade ele é um movimento econômico e político. Muitos caminhoneiros e grupos que participam desse movimento esperavam uma mudança do próprio governo. Desejam uma mudança do governo. Existe um conteúdo político que foi esvaziado. Ninguém fala que, além de todas as reivindicações, eles querem um novo governo.
Estadão – O que seria esse novo governo? Falou-se muito que alguns pretendem a volta de um regime de força, uma ditadura militar.
Gabeira – Eu acho que eles não têm noção do que seria o novo governo. Aqueles que articulam essa ideia veem na volta dos militares uma alternativa, mas ao mesmo tempo a gente ouve e sente uma revolta difusa contra o que chamam de roubalheira. É ao mesmo tempo um movimento contra a corrupção e contra os políticos, mas não tem uma visão do que colocar no lugar.
Estadão – Existiria um certo moralismo autoritário difuso no movimento?
Gabeira – Existe uma visão potencialmente autoritária que coincide com uma noção apressada e falsa de que o processo democrático fracassou. Não que eu não dê razão a quem acha que o sistema partidário e político está na ruína, mas eu não acho que o sistema democrático fracassou.
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Estadão – O sr. acha que esse movimento pode evoluir como em 2013 para uma rejeição à política?
Gabeira – Até o momento quase todo apoio que ele recebeu foi difuso e mais ou menos voltado à condenação dos políticos. Há uma parte de gente que não está ligada ao preço do diesel e às condições de trabalho dos caminhoneiros que acha que vale a pena (protestar) porque o governo não presta. Essa é uma atitude comum e se manifesta na entrega de alimentos e material de infraestrutura para os caminhoneiros. E há o apoio dos motoristas de aplicativos, de táxis e de vans escolares que encaminharam uma espécie de apoio econômico e esperam se beneficiar com essas conquistas.
Estadão – Quando o sr. diz que o preço da gasolina não precisava ser tão alto, aborda a questão sobre a quem o Estado serve. O sr. considera que as pessoas também estão questionando isso?
Gabeira – Eu acho que sim, embora não o façam de uma forma articulada, elas questionam os gastos e a roubalheira da política, mas, simultaneamente, o que reivindicam representará o aumento de gastos do Estado. A melhor maneira de tratar o assunto, além de ter um serviço de inteligência, coisa que andou longe nesse caso, é ter uma visão de como diminuir o preço por meio da redução de impostos. Houve uma ideia brilhante que surgiu que é ter uma espécie de gatilho que, aumentando o preço do petróleo, diminua o imposto para garantir o equilíbrio. Isso devia ser feito antes pelo governo.
Estadão – Por que o sr. acha que a política não conseguiu vislumbrar essa crise que se avizinhava?
Gabeira – Primeiro porque os políticos criaram um universo distante do mundo real e frequentam muito pouco esse mundo real. Depois, mesmo se frequentassem, o objetivo deles está voltado para as suas respectivas eleições ou, no caso de um grupo pequeno, entre os quais incluo o presidente da República, à sobrevivência em relação à Lava Jato. Esse conjunto de preocupações com os interesses eleitorais e sobre como escapar da polícia dificulta muito ter uma visão da realidade brasileira.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”