Em teoria, Julia Boutaud tem tudo o que se espera de uma empreendedora: formação técnica, dinheiro no bolso e um plano de negócios. Só que, na prática, ela não é dona de nenhuma empresa. E não é dona, simplesmente porque Julia concluiu que isso não valeria a pena.
Formada em publicidade, a paulistana ficou por um ano trabalhando no projeto de uma escola de circo teatro para estudantes de colégios particulares de 4 a 18 anos de idade. Passou por um ciclo dentro da incubadora de uma universidade, levantou R$ 2 milhões entre recursos próprios e dos pais e já estava na rua atrás de um ponto comercial quando optou por adiar o seu projeto.
“Decidi manter o dinheiro aplicado”, conta ela, que tem as suas economias concentradas em um plano de previdência privada, um investimento de baixo risco do mercado financeiro, mas com rendimentos equivalentes à taxa de juros Selic, atualmente em 13,75% ao ano, com perspectiva de alcançar 14,25% ao término da reunião de hoje em Brasília do Comitê de Política Monetária (Copom).
“Eu falei para ela que o nosso amigo seria o tempo”, relembra o pai e conselheiro de Julia, Philippe Boutaud, ex-presidente de empresas como Johnson & Johnson e da extinta DirecTV. “O (preço dos ativos no) mercado imobiliário está caindo e o consumo também. Em compensação, como temos o dinheiro aplicado em investimentos, digamos, extremamente conservadores, poderia ficar lá rendendo. Só temos de assegurar o melhor momento para começar a trabalhar”, afirma.
A postura dos dois – pai e filha – é, na opinião de alguns especialistas, compreensiva. Sobretudo para um momento marcado por escalada da inflação (alta de 9,25% nos últimos 12 meses), de inadimplência entre consumidores (crescimento de 21,5% em julho) e com a taxa de juros básica da economia, a Selic, também em viés de expansão. Contudo, esses mesmos especialistas dizem que o nível de consciência adotado pela publicitária é raro entre empreendedores locais. “Uma alta taxa de juros pode adiar a decisão de compra, mas nem sempre é assim. Isso porque, para um número grande de empreendedores, o desejo de conquistar um objetivo, tocar a empresa, é muito forte”, afirma José Balian, professor de administração da ESPM.
Marcos Hashimoto, professor de gestão da Fundação Instituto de Administração (FIA), concorda. “A crise econômica vem retraindo uma parte do que chamamos de empreendedorismo por oportunidade. No entanto, outra parte, embora sensível à situação atual, vislumbra oportunidades onde para outros existe crise”, destaca Hashimoto. Ele enxerga motivações distintas entre o investidor do mercado financeiro e o de iniciativas empreendedoras.
“A justificativa de muitos empreendedores que começam um negócio próprio é ficar rico, mas muitos sabem que isso só acontece no longo prazo, se acontecer. A maioria investe e nem pensa em retorno do capital, quanto mais remuneração do capital”, diz Hashimoto.
Isso ajuda a explicar, por exemplo, a trajetória do gaúcho Maximiliano Carlomagno. Dono de uma consultoria em inovação e sócio de uma aceleradora de startups, ele adquiriu em 2013 um restaurante no centro de Porto Alegre. Era a primeira incursão do investidor, habituado a lidar com empresas de grande porte ou negócios de tecnologia em estágios iniciais, e não foi uma experiência bem-sucedida. “Eu vendi a operação no fim do ano passado, em tempo de pelo menos rever parte do investimento inicial”, conta ele, que aplicou R$ 1 milhão no negócio e não conseguia levantar margens superiores, por exemplo, às da Selic da época.
“Como investimento, não era um bom negócio. Mas eu comecei a empresa para sentir como era tocar um negócio tradicional e colocar em prática alguns conhecimentos de gestão”, conta ele, que se diz satisfeito com o retorno. “Eu não perdi dinheiro e tinha uma reserva de capital. Mas eu sei que, infelizmente, essa não é a realidade de todo mundo.”
Fonte: O Estado de S.Paulo.
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