As políticas creditícias das três últimas diretorias do Banco Central foram bem-intencionadas e geridas com competência. Apresentaram avanços, mas falharam em alguns aspectos. Na primeira, na conclusão do Projeto Juros e Spread Bancário, as taxas do cheque especial pessoa física aumentaram; na “cruzada do crédito”, idem; e na Agenda BC+, também.
Atualmente, a taxa média do cheque especial pessoa física divulgada pelo Banco Central é de 322% ao ano. Entretanto, a taxa efetiva é maior. Se for incluído o IOF, sobe para 351%. Para prazos menores que um mês, a taxa efetiva é maior ainda, uma vez que uma parcela da composição é fixa. Para uma operação de 24 dias a taxa sobe a 357%.
É paradoxal: a Selic está num piso histórico, caiu de 25% para 6%, a taxa do cheque especial está próxima do máximo e a lucratividade do sistema está no mesmo patamar. Note-se que a taxa média do cheque especial nos Estados Unidos é de 17% ao ano, 20 vezes menor do que a brasileira. A taxa mais alta na Alemanha é de 22%, 23 vezes menor do que a máxima do Brasil. São dois países que adotam o livre mercado.
A atual diretoria lançou a Agenda BC#, parecida com os outros três projetos, com alguns aprimoramentos, mas cujo desempenho não deverá ser muito diferente. O motivo é uma visão míope do crédito que ignora aspectos importantes da intermediação. Há pontos cegos que devem ser considerados para uma política creditícia mais eficaz.
O estudo apresentado no último Relatório de Economia Bancária, no box Garantias e diferenças nas taxas de juros de crédito, ilustra esse ponto. Conclui que operações com mais garantias têm juros menores e faz comparações numéricas entre as taxas do crédito consignado e não consignado. Entretanto, omite informações essenciais para entender as taxas mais baixas.
O consignado deslanchou em 2003, após a edição da Medida Provisória 130, transformada depois na Lei n.º 10.820. Dispunha sobre a modalidade para trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Visava a ampliar o acesso ao crédito em condições mais favoráveis.
Todavia, num primeiro momento, apresentou disfunções, como taxas praticadas acima de 150% ao ano e três vezes maiores do que as anunciadas, falta de transparência e pagamentos de comissões a sindicatos para “comprar” exclusividade de oferecer o produto a filiados. O propósito da norma estava sendo desvirtuado. Em 2005 foi feita uma correção.
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Uma modalidade do consignado foi normatizada com o teto máximo de taxas e o estabelecimento de alguns protocolos, como uniformidade de critérios para a oferta do produto, regras de divulgação de informações, vedação da taxa de abertura de crédito, limites de comprometimento da renda e de prazos e o fim do pagamento de comissões para exclusividade.
A medida (Instrução Normativa n.º 121/2005 do INSS) fez com que as taxas cobradas despencassem, acabassem os abusos e se eliminassem as demais distorções. Um efeito colateral é que, após a correção, a modalidade tem gerado lucros sustentáveis para os bancos até os dias de hoje.
Outro ponto cego é a afirmação de que a inadimplência é a principal responsável pelos juros altos. O fato é que a morosidade é elevada porque o crédito é mal concedido. Algumas instituições cobram taxas exageradamente altas, causando dívidas impagáveis e externalidades negativas. Há bancos que cobram taxas mais de 50 vezes maiores do que a Selic para empresas e mais de cem vezes para cidadãos.
Há mais distorções na oferta de crédito. Um exemplo mostra bem: a taxa máxima para aquisição de veículos pelos dois bancos federais de varejo é de 23% ao ano e a mínima do cheque especial é de 284%. Quando um cidadão tem dificuldades e atrasa, é empurrado para o cheque especial, 12 vezes maior. Começa com um problema de caixa que vira uma dívida impagável. A garantia é executada e o banco melhora o seu balanço.
No caso de garantias imobiliárias, o imóvel é retomado rapidamente e leiloado com preço, em alguns casos, a 50% do valor de mercado. A dívida original é acrescida de juros do cheque especial, honorários de advogados, comissões de leiloeiros e outras taxas. Foram dezenas de milhares nos últimos anos, desvirtuando a função desses bancos.
Há quem afirme que mais facilidades para a execução de garantias, sem mais protocolos, reduzirão as taxas. É um paralogismo. Ao contrário, teriam o efeito perverso em algumas instituições de elevar os juros para reduzir a inadimplência. Quanto mais altos forem, mais rapidamente o mutuário entra na armadilha da dívida e quando a garantia for executada a inadimplência acaba e aumenta o lucro do emprestador.
Um agravante na concessão de crédito é a cunha institucional. É uma aberração. Suponhamos que um banco capte a 6% e aplique a 351% com um índice de eficiência bom, de 50%, e sem inadimplência. De cada R$ 100 de resultado da operação, R$ 5 vão para o depositante, R$ 47 para o banco e R$ 48 para o governo (IOF, Imposto de Renda e adicional, PIS, Cofins e CSLL). Com inadimplência, a parte do leão aumenta.
A cunha é agravada com outras distorções, como os compulsórios, algumas restrições e o compliance. O CCC dos bancos, que era clientela, crédito e custos, virou compliance, compliance e compliance. Por outro lado, os aplicadores têm uma tributação baixa e protocolos aprimorados. O sistema está voltado para rentistas, em detrimento da produção.
A consequência desses pontos cegos e outros é que os juros pagos pelos tomadores de crédito totalizam 8% do PIB. É mais de quatro vezes o déficit primário. É um lastro na economia que pode ser removido rapidamente, com uma reengenharia financeira, institucional e tributária e a fixação de alguns protocolos. Basta copiar o que outras economias de mercado fazem. Dessa forma o crédito se tornaria um propulsor para tirar o País do marasmo em que está.
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/08/2019