As manifestações contra Wall Street, como símbolo do capitalismo contemporâneo em seu aspecto financeiro, expõem ações que permitem lançar uma luz particular sobre a natureza, digamos, “moral” (ou imoral) de determinadas práticas capitalistas atuais. Práticas capitalistas que, convém ressaltar, se voltam contra o próprio espírito do capitalismo.
Na crise de 2008-2009, o que chamou moralmente a atenção foi o fato de os executivos das grandes corporações financeiras e bancárias usufruírem grandes dividendos sob a forma de salários, bônus e vantagens dos mais diferentes tipos. Note-se que não se trata de um argumento contra dividendos e bônus, sempre e quando estejam assentados na responsabilidade. Se um executivo tem mérito, tanto melhor para ele, pois está colhendo os frutos do seu trabalho. O lucro é a recompensa pelo trabalho, não cabendo nenhum argumento ressentido dos que simplesmente invejam os bem-sucedidos. O problema é de outra ordem. Os executivos que levaram seus bancos à falência por operações extremamente arriscadas, utilizando os modernos meios digitais, não têm mérito. Cobraram por aquilo que não entregaram. Ou melhor, entregaram a poucos que lhes pagaram os polpudos rendimentos graças a ações de caráter imediato, porém a longo prazo criando para suas empresas situações pré-falimentares.
A crise econômica atual, de perfil financeiro, tem um forte componente moral. O mecanismo financeiro que levou à insolvência dos créditos, particularmente na bolha imobiliária, estava baseado em concessões várias vezes repetidas de créditos, assentados em avaliações que se tornaram fictícias dos imóveis postos em hipoteca. Enquanto o mecanismo funcionava, empurrando o problema com a barriga, numa ciranda que mais se assemelhava a uma jogatina, certos analistas de mercado e economistas cantavam loas a esse novo mercado.
Acontece, contudo, que esse mercado estava alicerçado num pressuposto, o de que o pagamento dos créditos se faria por novos créditos, criando a ilusão de que os créditos não seriam, na verdade, pagos. Dívidas se pagariam com novas dívidas, num acordo, na verdade, fictício, entre financiadores e os que contraíram empréstimos, numa relação contratual aparentemente correta. O problema está na aparente correção desse tipo de contrato, porque o componente moral é dele evacuado, como se não existisse ou não contasse.
Vejamos. Se um empréstimo é contraído para não ser pago, é porque tanto o credor como o tomador assumem a irresponsabilidade de suas ações. O agente bancário torna-se irresponsável por seu crédito e o tomador, por seu empréstimo, embora o contrato seja perfeitamente legal. Empréstimos são ações que pressupõem, como qualquer forma de ação, responsabilidade. Mas esse tipo de operação financeira está baseado na irresponsabilidade, do credor e do tomador.
No momento, porém, em que sua falha moral irrompe, ambos os contratantes procuram transferir suas respectivas irresponsabilidades ao governo, como se este devesse ser o responsável pelas irresponsabilidades alheias. Do ponto de vista dos bancos, surgem os supostos argumentos de que estes não podem quebrar, ou seja, traduzindo essa formulação em termos morais, os bancos têm todo o direito de ser irresponsáveis. Segundo o princípio da irresponsabilidade, o conjunto dos contribuintes deve se responsabilizar pelos bancos cujos dirigentes e acionistas usufruem os maiores dividendos e bônus.
Os tomadores de empréstimos também pedem socorro ao governo, exigindo, em troca do seu voto, refinanciamento de suas dívidas, ajuda para situações de insolvência, seguro-desemprego, e assim por diante. Políticas sociais são demandadas. Politicamente, ameaçam por uma solução, culpando os bancos por seus infortúnios, enquanto estes culpam aqueles pelas dívidas não pagas. Temos, então, uma situação assaz estranha, pois a irresponsabilidade moral se traduz em exigências políticas dos desfavorecidos, devendo o governo atendê-las.
Ato contínuo, os governos salvam seus bancos e procuram atenuar os efeitos da insolvência, via estímulo da economia, para que o mecanismo financeiro volte a funcionar. O instrumento utilizado é o aumento da dívida pública. Ou seja, para assumir a irresponsabilidade alheia, os governos tornam-se ainda mais irresponsáveis, transferindo uma dívida impagável para as próximas gerações, como se estas, aliás inexistentes nesse momento, devessem ser responsáveis pelo que não fizeram. Nesse contexto, a máxima de Keynes de que “a longo prazo estaremos todos mortos” é um elogio à irresponsabilidade, uma ode à imoralidade. E essa ode à imoralidade é citada por vários economistas como uma forma de sapiência – a sapiência dos irresponsáveis que auferem lucros por sua própria irresponsabilidade.
Ressalte-se que banqueiros e altos executivos, após a crise, continuaram usufruindo os mesmos privilégios e apresentaram como argumento que se trata de uma prática privada de mercado. O argumento é hilário. Quando confrontados com uma situação de quebra virtual, o argumento de mercado, no caso, a falência por maus negócios, não valeu. É o Estado, isto é, os contribuintes, que deveria arcar com seus maus negócios. Impostos deveriam ser destinados a eles para se salvarem. O privado, aí, tornou-se público. Nem o que ganharam individualmente foi devolvido. Passada a tormenta, voltam aos mesmos supostos argumentos – surrados, aos olhos da opinião pública – de que o mercado estipula esses valores de bônus e dividendos. O argumento é especialmente vicioso, mostrando, na verdade, o “vício” dos que assim agem. Pervertem o espírito do capitalismo em proveito próprio. Não deveriam, pois, causar estranheza as manifestações contra Wall Street.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 24/10/2011
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