Imagine all the people sharing all the world
John Lennon
Enfim, foi aprovada a lei de reforma do ensino médio, embora com algumas mudanças, como o retorno da obrigatoriedade de disciplinas como filosofia e sociologia e, mais uma vez, a desconsideração da educação moral e cívica que, segundo autoridades do Ministério da Educação, deve ser tratada como conteúdo transverso em disciplinas como história, geografia, sociologia e filosofia.
Todavia, em minha opinião, aí mesmo é que mora o perigo de resiliência do imaginário social populista, coletivista e igualitarista que domina a vida política nacional, sobretudo nesta geração milênio, filha dos que vivem sob a corrupção dos valores morais implantada pelo democratismo da constituição “cidadã”, e dado nosso professorado de humanas, de viés esquerdista, estar sempre convencido de que cidadania é mais “direitos sociais” do que deveres cívicos e políticos.
Os recentes e indecentes espetáculos de corporativismo renitente de servidores públicos cerceando a segurança e a paz do cidadão comum dão bem a dimensão da corrupção de valores praticada por nossas “lideranças sociais”.
Há poucos dias também havia recebido a dica de leitura do livro “Empowering global citizens: a world course“, de Fernando Reimers, pesquisador venezuelano radicado nos EUA, professor de educação internacional na Universidade de Harvard.
Suas pesquisas têm como foco as inovações em educação e seus impactos em políticas educacionais, bem como formação para a liderança e a cidadania global, mas também comunitária e local, pois não há contradição entre as duas dimensões.
Pelo contrário, o modelo de ação social e política de um cidadão numa comunidade local é o mesmo para sua atuação no mundo.
Como nos indica o sociólogo Roland Robertson com seu conceito de “glocalização”, quando o fenômeno de globalização, resultante das novas tecnologias de informação e comunicação digital, empoderam globalmente a ação política local dos cidadãos e vice-versa. Ideia já mencionada desde o século XIX, por exemplo, na citação de Tolstoi: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia.”
E o próprio Reimers quando afirma: “Um dos elementos mais importantes de uma Educação de qualidade é a preparação dos alunos para compreender o local onde vivem, atuar nele e, assim, inventar um mundo melhor”.
Aliás, esta palavra de ordem embalou toda uma geração de rock and roll. E que data de outras globalizações anteriores, como a das Grandes Navegações, ou mesmo da expansão do Império Romano, quando Terêncio pontificou: “Nada do que é humano me é indiferente”.
Introduzido o curso em algumas escolas de elite no Brasil, a questão que se coloca é a de saber se podemos formar jovens cidadãos globais brasileiros da mesma qualidade dos cidadãos globais de países de primeiro mundo, sobretudo nos corretos valores que inspiram o humanismo nascido da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, até os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU de 2015, sem a consciência prévia de que conceito de cidadania estamos falando, dadas as torções e distorções da cultura política de nossas elites, como já disse, quando tratam cidadania mais como afirmação de direitos sociais do que de deveres cívicos e políticos.
Porque o verdadeiro sentido da ação de uma cidadania política eficaz está para além da convicção individual ou da comunidade local de nossa experiência de vida.
Para não corrermos o risco do paradoxo de formarmos uma elite que pretenda, por exemplo, combater a fome abstrata no mundo, sem se engajar no combate à fome concreta de seu concidadão na comunidade em que vive.
Entendendo-se cidadania enquanto filantropia, solidariedade e até mesmo direitos sociais, sem dúvida que podemos, pois se trata de cultivar valores morais de nossa conduta individual tão simplesmente.
Mas se ampliamos o conceito de cidadania social para cidadania política, como meio de atingirmos maior impacto na adoção de políticas públicas efetivas, evidentemente que temos de tomar o devido distanciamento crítico para a adoção de um curso mundial de cidadania, uma vez que a base da educação cívica e política de países mais desenvolvidos é sólida, diferentemente do Brasil onde nem sequer a disciplina moral e cívica foi resgatada, como estamos a constatar.
Mesmo assim, vemos que as restrições na adoção de políticas de cidadania global, sobretudo agora sob o governo Trump, faz parte de uma densa discussão entre fenômenos como globalização e globalismos.
Onde, se a economia cresce com a globalização, pelo ganho de produtividade na busca da competição entre fornecedores mundiais, a cidadania passa a ser a última trincheira de defesa política para obrigar aos governantes locais a proteger seus empregos via barreiras tarifárias negociadas, contra o dumping internacional.
Assim como defender a segurança de suas comunidades contra o terrorismo mundial e, sobretudo, defender os recursos públicos dos desvios da corrupção dos próprios governantes.
Se o fenômeno da globalização, enfim, pode se justificar enquanto afirmação da cidadania mundial, iniciativas de globalismos multiculturais de cunho humanitário e da defesa da ideia abstrata de direitos humanos, podem, ao contrário, solapar o exercício da cidadania política local.
Pois quanto mais local e menor o território de exercício da governança, maior a soberania dos cidadãos e o exercício de controle social dos governantes, essência mesma da cidadania global. Ou “glocal” como acima exposto.
Como logo na introdução do livro o autor afirma que a educação para a cidadania global é essencial para a criação de um mundo sustentável e pacífico, sem fome nem pobreza e onde todos os homens vivam com educação e saúde, a questão fundamental é se checar a viabilidade de projeto tão ambicioso em face não apenas da natural falibilidade humana, mas, sobretudo, das diversas concepções políticas doutrinárias a que estão submetidas as próprias elites dirigentes de diferentes comunidades e países.
Se o accountability dos governantes locais e nacionais por parte dos cidadãos mais atuantes já é difícil, sobretudo nos países em desenvolvimento em que mais precárias são as ofertas dos serviços públicos à sociedade, imagine-se os cidadãos globais na tarefa quase impossível de exercer controle social, monitoramento e cobrança de efetividade de políticas humanitárias mundiais a burocratas de entidades internacionais multilaterais que sequer foram eleitos pelos mesmos cidadãos e estão longe dos problemas concretos que vivem nas sedes de suas organizações.
Conceitos de cidadania política, alinhados como deveres cívicos e não apenas direitos humanos abstratos e sociais distorcidos, oriundos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, por exemplo, poderiam ser objeto de um excelente exercício para jovens brasileiros intoxicados pelo populismo, coletivismo e igualitarismo disseminados pela cultura política esquerdista dominante no Brasil, que poderia contribuir para a efetiva cidadania global com uma declaração de deveres cívicos e políticos do homem.
Mesmo que fosse uma contribuição do Brasil para a efetividade dos objetivos do desenvolvimento sustentável da região latino americana onde exerce influência e tema em destaque do próprio curso de cidadania mundial proposto pelo professor Reimers.
Aliás, o programa de Agentes de Cidadania de nosso Instituto de Cultura de Cidadania se assemelha em muito à recomendação objetiva do curso mundial na formação de “agentes de mudança” para o século XXI.
O maior obstáculo, para além do professorado esquerdista e da classe política corporativista, é o preconceito dos produtores de conteúdos da grande mídia, que investe contra a emergente cidadania política nacional em dose dupla: nas entrevistas sobre questões públicas com especialistas de notório saber acadêmico que alienam o cidadão comum e refletem apenas a opinião dos editores na busca incessante por credibilidade; e, na busca incessante por audiência, no exagero com que cobrem mais as más notícias do cotidiano de escândalos dos governantes do que nas boas novas da ação da cidadania política do país.
Mas o currículo sugerido no curso mundial do professor Reimers é auspicioso.
Desde os temas do jardim de infância sobre o mundo diverso e bonito em que todos vivemos, passando pelo primeiro grau, com o tema de um só povo no mundo com necessidades iguais, todos dependentes de todos, no segundo e terceiro graus, até os temas de ascensão e queda das civilizações, no quarto grau, liberdade e direitos individuais, no quinto, valores e identidades que modelam pessoas e instituições, no sexto, estudos de mudanças sociais e papel dos agentes de mudanças, até migrações, nos sétimo e oitavo graus.
Para além de projetos individuais sobre temas como novas tecnologias, países em conflito, desafios da saúde pública, para os alunos de nono e décimo graus.
No ensino médio (High School), por cinco semestres consecutivos, e aliando a aquisição de conhecimento com projetos de campo, os temas do meio ambiente, da saúde pública, os conflitos globais, as resoluções de conflitos, o crescimento e desenvolvimento na América Latina, as tecnologias de inovação e a globalização.
Neste último estágio, mas não apenas nele, é que defendemos programas de laboratório de utilização das redes sociais, como os Agentes de Cidadania do Instituto A Voz do Cidadão. Até mesmo porque produzidos pelos próprios estudantes em interação direta com seus pais.
Estes mesmos pais que, elite social com poder de granjear o melhor da educação privada para seus filhos, têm descuidado de sua participação cívica na condução dos negócios públicos, na ingênua crença de que podem legar um futuro melhor para os seus desassociado da miséria da representação política a que somos todos submetidos.
E aí, temos o que temos: um Brasil lavado a jato que tenta recuperar o tempo perdido pela omissão (ou conivência?) de suas próprias elites que, se não cidadãos plenos e atuantes, têm agora a oportunidade de se reinventarem como cidadãos globais por força da interação, entre outros, com seus próprios filhos.
Fonte: “A Voz do Cidadão”, 15 de fevereiro de 2017.
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