Os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (originalmente “do Homem”) serão comemorados logo após as eleições de 2018, em dezembro. E coincidirão com os 170 anos da segunda Constituição da República Francesa, calcada nos dezessete artigos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, lançados pela revolucionária Assembleia Constituinte de 1789.
Longa trajetória, mesmo que se descarte a estranha visão de que tais declarações seriam versões modernas de um antiquíssimo compromisso com a justiça, que remontaria a Platão (348 AC), ao cilindro do imperador persa Ciro o Grande (539 AC), e até mesmo ao Deuteronômio, quinto livro da Bíblia (1473 AC). Interpretações que ofuscam as complexas evoluções do direito natural e do direito positivo diante de fatos como tortura, escravidão e Holocausto.
Mais: é preciso questionar se o que hoje se entende por direitos humanos corresponde ao que se entendia em 1948. Principalmente porque o direito internacional foi por imenso tempo apenas o direito das nações. No contexto do processo de descolonização e da ordem mundial da Guerra Fria, o que largamente dominou as mentalidades dos juristas, dos políticos – e, inclusive, dos mais significativos movimentos sociais -, foram os direitos coletivos à soberania nacional e ao desenvolvimento. Não os direitos humanos.
Episódio que chega a ser hilário, foi a decisão da ONU, em 1968, de enaltecer os vinte anos da Declaração Universal com uma conferência em Teerã, aberta pelo tirano Xá Mohammad Reza Pahlevi e conduzida por sua irmã, a princesa Ashraf, que se empenhou em legitimar a narrativa dominante, segundo a qual a autodeterminação dos povos, via criação de Estados nacionais, teria sido o apogeu da longa marcha dos direitos humanos.
Mas será que isso não teria justamente provocado protestos de segmentos da sociedade civil por legítimos direitos humanos? Muito pelo contrário: 1968 – aquele ano que começou com a Ofensiva do Tet no Vietnã, e que terminou (sim) com a Apollo 8, primeira nave tripulada em órbita lunar – foi chacoalhado por inúmeras rebeliões de jovens que tanto se entusiasmaram com a ousadia dos estudantes e operários do Maio parisiense quanto ficaram perplexos com a brutal repressão à Primavera de Praga. Será que em alguma dessas manifestações sociais teria sido dado tanto destaque aos direitos humanos quanto às já vetustas ideologias anarquista, comunista, libertária ou socialista?
O fato é que as coisas só começaram a mudar com a crucial persuasão de intelectuais, juristas e políticos, europeus e norte-americanos, pelos dissidentes soviéticos e de todo o leste europeu, assim como pelas legiões de refugiados das muitas ditaduras latino-americanas. E três fatos podem ter sido os mais determinantes para a virada: o fim da longa Guerra do Vietnã em abril de 1975, a vitória de Jimmy Carter na eleição presidencial americana no final de 1976, e a outorga do prêmio Nobel da Paz de 1977 à ONG Anistia Internacional por inesquecível campanha global contra a tortura.
Mesmo que a consolidação legal desse processo ainda tenha exigido mais umas duas décadas – com tribunal europeu ou sistema interamericano -, o mais decisivo no âmbito sociopolítico foi o surgimento, a partir de 1977, de inédita e poderosa cultura em favor dos direitos humanos, tese brilhantemente defendida por Samuel Moyn, jovem professor de direito e história de Harvard. Justamente no início do período que a ciência política convencionou ser “a terceira onda da democratização” (1974-1990).
Então, para celebrar, parecem infinitamente mais importantes os 40 anos dessa arrancada de 1977, do que os 70 da Declaração Universal de 1948.
Houve, porém, uma concomitante novidade que não pode ser subestimada. Desde 1972, a Conferência Mundial sobre Meio Ambiente Humano, desencadeara, em Estocolmo, um processo de tomada de consciência da responsabilidade das gerações presentes quanto aos direitos e oportunidades das gerações futuras.
Começou-se a falar em ecodesenvolvimento, inovação que precisou de quinze anos para virar desenvolvimento sustentável, a basilar contribuição do documento “Nosso Futuro Comum”, de 1987, vulgo “Relatório Brundtland”. E o primeiro dos 22 princípios legais ali propostos afirma que todos os seres humanos têm o direito fundamental a meio ambiente adequado à sua saúde e bem-estar.
Embora tenha sido bem assimilado pela Rio-92, esse novo ideal só apareceu de raspão na Declaração e Programa de Ação de Viena sobre os direitos humanos, de 1993. O mesmo ocorreu, já em 2001, na Declaração do Milênio que lançou os oito “ODM”. Por incrível que pareça, foi necessário esperar até o final de 2015 – com a Agenda 2030 e seus dezessete “ODS” – para que direitos humanos e sustentabilidade começassem a conversar.
Daí a imperiosa necessidade de ressaltar que ao longo de 2017 deverão ser simultaneamente lembrados os 40 anos da efetiva ascensão institucional dos direitos humanos e os 30 da emergência do desenvolvimento sustentável.
Fonte: “Valor econômico”, 26 de janeiro de 2017.
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