Acabo de chegar ao aeroporto de San Salvador, torturantes 14 horas depois de deixar a capital de Tio Sam. Minha relação com a American Airlines segue tumultuada: um cancelamento por baixa ocupação e um desembarque por problema mecânico, com direito à conexão adicional até Dallas/Forth Worth para alcançar El Salvador ainda hoje. Em menos de um ano, apago as velinhas de meu 21º contratempo aéreo.
Um sorridente salvadorenho de nome Boris, motorista da representação da OEA no país, recebe-me no desembarque e me entrega a salvo, 50 minutos depois, no suntuoso lobby em estilo neoclássico do hotel. Como em todas as demais capitais latino-americanas, o aeroporto local fica a léguas da Zona Central e os hoteis têm uma prevalência incômoda do dourado em sua decoração.
Descubro pelos jornais desta terça-feira nublada e quente (aqui nunca há inverno…) que o país amanhece sem transporte público, com barreiras nas estradas e exército em prontidão. As quarteladas de outrora me vêm à cabeça como fora um mau agouro, mas são os problemas da democracia globalizada que batem à porta.
As “marras” locais – irmandades de jovens desocupados arregimentados por salvadorenhos deportados dos EUA e organizados para delinquir de modo sistemático – passaram da intimidação à ação: cinco ônibus queimados (dois durante a madrugada, outros três hoje pela manhã) e ameaças de morte distribuídas a esmo na forma de folhetos apócrifos dirigidos à população em geral e aos pequenos comerciantes com negócios nas zonas mais pobres. Na manchete do dia, o chefe da Polícia Civil Nacional assegura que “temos tudo sobre controle”, enquanto centímetros abaixo a Diretora de uma ONG internacional fala em “conexões com o crime organizado transnacional”. O presidente Maurício Funes atira contra a oposição: coisa desta envergadura tem cheiro de “complô político”…
Avanço pelas páginas cheias de vozes dissonantes enquanto desfruto de uma verdadeira Festa de Babete centro-americana no restaurante do hotel, cuja entrada segue agora protegida por militares armados até os dentes: “pollo con lorroco” salvadorenho, acompanhado de “arroz chapim” gualtemateco e “índio viejo” nicaraguense. Peço “pupusas de quezo”, mas Alejandra me informa que estas maravilhas estão somente disponíveis no “desajuno” e já é hora do almoço. No relógio, 11:55hs.
El Salvador é um pequeno e densamente povoado país da América Central, espremido entre Honduras, Guatemala e a imensidão do Pacífico. São quase seis milhões de salvadorenhos, 1/3 dos quais vivendo no exterior, expulsos pelo conflito guerrilheiro dos anos 70, pela estagnação econômica da década seguinte e pelas promessas descumpridas de novos empregos gerados pela radical abertura comercial dez anos mais tarde: 2,8% de tarifa de proteção efetiva média ao final de 1999, a menor de todo o continente.
A diáspora é a única fonte visível de poupança para financiar qualquer projeto possível de acumulação. Todavia, os 18% do PIB em remessas enviadas ao país seguem incapturados por um sistema de bancário nacional quase inexistente e avesso a fomentar o investimento produtivo. Tudo que entra segue para o consumo das famílias; o que explica, ao menos em parte, os indicadores algo razoáveis de pobreza e desigualdade do país.
O que havia de capacidade industrial instalada nos anos 50-60 foi destruído pela guerra ou aproveitado como “maquilas” de produtos americanos e europeus que assim chegam ao mercado consumidor centro-americano livres de taxas, distribuídos por meio das excelentes estradas que tem o país.
Estamos aqui para reuniões de alto nível com seis Ministérios e agências governamentais previamente identificados com pontos focais para o desenho conjunto de uma “estratégia de apoyo-país” a ser oferecida pela OEA a El Salvador, com base em seu “Plan Quinquenal de Desarrollo 2010-2015”, resultado de um esforço nacional notável de buscar alguma forma de planejamento estratégico para “reformar” o que por aqui nunca se viu: a ação estatal em favor dos que dela precisam.
A dicotomia tola “Estado vs. Mercado” foi por anos impulsionada pela polarização política entre “(…) estes comunistas vermelhos que comem criancinhas (…)”, um mosaico improvável de movimentos e partidos de esquerda organizados sob as asas da FMNL; e pelos “(…) assassinos direitistas conservadores vendidos aos Estados Unidos (…)”, protegidos pelo então governo de partido único da ARENA. Não surpreende que, em meio à auto-desintegração dos partidos políticos tradicionais em diversos países latino-americanos, El Salvador siga com um sistema político mais marcado pelo embate das agremiações partidárias sob as quais se organizaram as forças em conflito do que pelas bravatas de algum caudilho autoritário de ocasião.
Em meio às guaritas de controle, gabinetes decorados com a onipresente foto presidencial, cartões em baixo relevo francês e rapapés protocolares com Ministros e Vice-Ministros, o dia passa agradável.
Poucas horas e muitos cafés depois, é possível divisar o tamanho da empreitada que nos espera: apesar dos imensos avanços recentes, falta tudo. 30% dos salvadorenhos são indocumentados, 42% das prefeituras não têm sequer um único computador e o governo central enfrenta um déficit estrutural crônico: iria à bancarrota não fossem os dólares que chegam do exterior. Nem as remessas, nem os milhões de dólares e euros da ajuda internacional – não há agência multilateral que não tenha escritório por aqui – conseguiram arrancar o país da “lanterninha” do crescimento centro-americano na primeira metade da década.
Pior (ou melhor, ainda não sei ao certo…): a chegada ao poder do primeiro governo de esquerda em mais de 20 anos destapou a panela de pressão da demanda reprimida por diretos sociais universalizados que custará uma fortuna que o país não tem…
O nó central aqui é como divisar uma estratégia para promover uma transformação produtiva que permita o Governo capturar impostos para financiar de modo permanente o Sistema de Proteção Social Universal pretendido e fomentar o investimento produtivo, na ausência de um mecanismo de acumulação anterior. Minha aposta inicial é a bancarização das reservas para a capitalização de um fundo enfocado no fomento às PMEs e ao empreendedorismo local. Mas no tal PQD, nem uma linha…
Pego o último voo da AA para Miami; desta vez sem maiores sobressaltos. Equilibro sobre a mesinha retrátil do já apertadíssimo 737-800 exatas três dúzias de folhas amarelas cheias de rabiscos inescrutáveis a olho nu, o MacbookPro velho de guerra e uma dose de uísque displicentemente despejada pela comissária em um copo plástico descartável por abusivos sete dólares a 11 mil pés de altura. O tipo de óculos sentado ao lado boceja e abre o Washington Post.
Sinto que estou a caminho de casa… Em duas semanas tem mais. Prometo fotos… e ideias que justifiquem o salário que me pagam em Washington-DC.
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