As inquietantes notícias sobre o setor elétrico brasileiro já começam a apontar o culpado preferido, São Pedro. Estamos novamente com baixos níveis de reservatórios, o que eleva o preço do mercado de curto prazo ao limite máximo, põe as distribuidoras numa situação preocupante e causa ganhos fantásticos para alguns geradores sem contrato de longo prazo. O cenário fatalmente irá “desaguar” nos nossos bolsos de consumidor e no de contribuinte. A fragmentação e a instabilidade são os sintomas de um modelo que tenta “falar inglês”, mas não compreende a gramática.
Não tenho outra licença para advogar a favor do Santo das chuvas , mas os dados negam uma terrível conspiração do clima. Apesar da longa redução na hidrologia do S. Francisco, ela não é suficiente para justificar o risco. Se ela for permanente, ou buscamos suas causas ou nos adaptamos. Para notar essa ausência de crueldades divinas, é preciso compreender algumas dimensões do nosso sistema.
Os nossos rios fornecem afluências que, transformadas em energia, variam no entorno da nossa carga total. Por exemplo, em 2011 essa energia natural superou em 19% a carga anual. Em 2009 excedeu em 25%, e em 2010 em 3%. Já em 2012 e 2013, foram deficitárias em 15% e 5% respectivamente. Esse é um confronto da força dos rios e do vigor de nosso consumo anual, não sendo considerado a energia de térmicas, eólicas ou qualquer outra forma de geração. Além dessas fontes estrarem fora dessa conta, também não está a capacidade de armazenamento do sistema, que chega a aproximadamente metade da carga anual.
Portanto, nada de culpar S. Pedro por falta de chuva em um mês. Não há como excluir do tema a gestão de longo prazo desses “estoques”. Afinal, reservatórios são como caixas d’água, podem esvaziar por falta de chuva na entrada, mas também por excesso de uso na saída. Pelas dimensões da reserva, nosso sistema é como o elefante, tem memória de longo prazo e se lembra do passado.
No “dilema” de usar ou não a água dos reservatórios ao invés das térmicas, chama atenção o ano de 2012. Depois de um superavitário 2011, o ano 2012 já mostrava sinais de afluências insuficientes desde fevereiro. A geração térmica oscilava no entorno de baixos 3 TWh mensais. Em abril, sobe para quase 6 TWh, mas, logo depois, recua para os 3 TWh anteriores. De repente, logo após o anúncio da medida provisória 579 de 11 de setembro, essa geração térmica quase triplica. Mera coincidência? Pode ser, mas a pergunta incomoda: Será que, sob a obsessão pela redução da tarifa, aguardou-se a medida provisória para “abrir espaço” para a geração térmica?
Se num certo mês térmicas de R$ 300/MWh permaneceram desligadas e, 4 meses após, além delas, térmicas de mais de R$ 600/MWh são acionadas, não se conhece aplicação financeira melhor do que usar as mais baratas antes. Isso coloca em cheque o critério de formação de preços do sistema, o que, no nosso caso, extrapola em muito o mercado livre.
Alguns culpam a não construção de novos reservatórios. Claro que ajudaria, mas, além de não existirem as mesmas condições que nos proporcionaram construir essa armazenagem no passado, se quiséssemos ter a mesma relação reserva/carga do ano 2000, teríamos que adicionar quase 40% de novos reservatórios. Seria como dois novos rios S. Francisco e, mesmo se construíssemos, logo estaríamos deficientes outra vez, pois a carga continua a crescer.
Mas, nada disso é o mais grave. O que realmente preocupa é que já estamos indo para o segundo ano onde usamos as térmicas além do usual e planejado. Enquanto o custo de adicionar uma nova usina gira no entorno de R$ 110/MWh, o sistema já opera a custos superiores a R$ 400/MWh. Não é muito difícil entender que o sistema está estressado e pede novas usinas. Sob esse quadro preocupante, não se consegue entender como políticas de eficiência energética e geração distribuída permanecem na gaveta. Todos os anos milhares de kWh são perdidos nos postes, que já nem escondem a desordem.
Como, a reserva total está perdendo a corrida para a carga, o critério de operação mudou e ainda vai mudar mais. Se ele não é mais o mesmo, todos os certificados de “garantia física” outorgados no passado precisam ser revistos, o que traz um impacto comercial enorme para as empresas, colocando na berlinda o nosso modelo mercantil.
A filosofia de mercado pode funcionar muito bem se o sistema é de base térmica.
Ali, os preços estão atrelados à geração física. Esses sistemas não tem memória, mas o nosso é o elefante que não esquece. Aqui, a geração é determinada pelo operador, usinas vendem um certificado de energia que depende de critérios que podem variar, as diferenças entre o gerado e o comercializado podem ser significativas, o preço de liquidação não é fixado pelos agentes e seu valor reflete também as escolhas feitas no passado. Tudo isso nos leva a perguntar: Por que, sendo o sistema brasileiro tão singular e fisicamente distinto, insistimos em mimetizar situações estranhas à nossa natureza?
A resposta não é fácil e pode ter raízes culturais. Só me resta citar o grande Sergio Buarque de Holanda, que, em 1936, em seu livro “Raízes do Brasil”, escreveu: “Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem”.
Fonte: Valor Econômico, 05/02/2014
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