As eleições nunca se repetem. Cada qual tem sua identidade, um conjunto de vetores e fatores que balizam a decisão do eleitor, características próprias e acasos, como se viu neste pleito, cujo desenvolvimento foi moldado pelo repentino e trágico desaparecimento de um dos contendores. Mesmo assim, alguns traços podiam ser identificados no horizonte eleitoral, como o sentimento de mudança, que desde junho do ano passado motivou as mobilizações gerais e setoriais, levando multidões às ruas de capitais e grandes cidades.
Sob esse prisma, era previsível a mão estendida dos candidatos na direção de um eleitor arredio, desconfiado e até disposto a evitar o cumprimento. Essa banda da sociedade decidiu claramente dar um voto ao conceito de mudança, que se interpreta menos como virar a mesa, alterar radicalmente a ordem política, mas na direção de avanços e progressos, melhoria nos serviços públicos essenciais, a partir de saúde, mobilidade urbana e segurança, a par da assepsia na gestão pública ou, em outros termos, eliminação dos cancros da corrupção.
Distingue-se, portanto, uma relação estreita entre os movimentos de rua que por meses a fio acenderam a chama cívica do país e o recado das urnas, ao contrário da observação de que as massas teriam apagado o facho, sinalizando apatia e desinteresse. O que se viu foi o contrário: uma multidão silenciosa, não de todo mapeada por baterias de pesquisas de opinião, votando sob a vontade de ver aperfeiçoadas as políticas públicas. Tal conscientização teria adquirido força na torrente de escândalos que há tempos ensombram o território moral, corroendo a imagem de representantes, governantes e partidos. Por conseguinte, se o resultado do pleito em algumas regiões chega a surpreender, certamente deve ser debitado ao espírito de um ano pontuado por denúncias de corrupção.
O Sudeste, a partir do maior colégio eleitoral, São Paulo, abriga vigorosas classes médias que, pelo visto, decidiram prestigiar perfis de oposição na eleição majoritária. Não por acaso, a polarização PT-PSDB ganhou força em São Paulo, ao contrário do que se cogitava tempos atrás, quando a análise política destacava o fenômeno da “corrosão de material” para definir os ciclos de poder das duas siglas. A candidata da “terceira via”, Marina Silva, não teve forças e estrutura para romper a polarização.
De maneira geral, a disputa produziu uma modelagem formada por três tipos de votos: o do bolso, com efeito na barriga, o do coração e o da cabeça.
O primeiro saiu da imensa população – cerca de 60 milhões de pessoas – que recebe adjutório do governo por meio dos programas Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida, Mais Médicos e outros. A equação é: bolso cheio enche a geladeira, que enche a barriga, levando a um voto de reconhecimento e agradecimento. É o que explica os cerca de 60% que a presidente Dilma obteve no Nordeste.
O voto do coração foi dado, sobretudo, à ex-senadora Marina Silva, sob o empuxo da onda emotiva que se formou após o acidente que matou o ex-governador de Pernambuco Eduardo Campos. Ademais, parcela considerável da população se identificou com a pregação marineira, com foco numa “nova política” (não fazer da política um balcão de negócios), vendo na candidata um perfil adornado por simplicidade, pureza de propósitos, defesa do meio ambiente, vida pacata.
Já o voto racional, em expansão no país, sai da cabeça dos habitantes do meio da pirâmide, eleitores de maior renda, principalmente das Regiões Sul e Sudeste, onde estão os maiores colégios eleitorais do senador Aécio Neves.
Há indicações de que a tal “nova política” assentará praça na próxima legislatura? Infelizmente, não.
Os resultados mostram, de um lado, grande renovação de quadros (46% de novos deputados na Câmara) e, de outro, uma representação que espelha a continuidade de grupos familiares, ao lado de fortes bancadas de setores conservadores. Parece um paradoxo. O clamor das ruas por mudança não furou o bloqueio de bastiões tradicionais. A bancada de empresários subirá de 220 para 280 deputados, a dos ruralistas vai crescer de 130 para 160, aumento de 23%, e a dos sindicalistas diminuiu de 83 para 46, ou seja, 44%. Já a “bancada da bala”, conhecida por agregar perfis de ex-militares e de posições radicais, ganhou votação expressiva, ao lado da ala de 20 pastores e bispos, irmanados no evangelismo. Por último, ressalte-se a maciça votação de atores midiáticos, como Celso Russomanno (que amealhou mais de 1,5 milhão de votos) e o palhaço Tiririca (mais de 1 milhão), que puxam seis candidatos de suas legendas, mais uma contrafação da velha política.
Auspicioso é o fato de vermos o eleitor, na reta final, dando um drible espetacular nos marcadores de seus passos, deixando-os às voltas com explicações pouco convincentes. A referência é sobre pesquisas. Em nove Estados (CE, PE, BA, MG, DF, RJ, SP, PR e RS) elas destoaram dos resultados finais, a distinguir uma multidão silenciosa que evita anunciar preferência aos institutos de pesquisa, podendo até mudar de posição na boca da urna. Daí se apontar a existência de um perfil interativo, que reage aos rumos da política, sem se deixar levar pelas trombetas do marketing.
Esfriados os ânimos, assentada a nova base política que governará a Nação a partir de 2015, esse cidadão poderá voltar às ruas erguendo as bandeiras da era que se abre. Significa dizer que o eleitor está acordado. Não é um ente passivo, amorfo. Tem um olho no sul, outro no norte, sem deixar de espiar nas laterais. Por isso mesmo foi ele o maior vencedor. Será um árbitro atento no segundo tempo do jogo. E saberá identificar jogadas perigosas, não dando chance a punhaladas pelas costas.
Rígido controle de qualidade deverá ser imposto pelas duas candidaturas para evitar ultrapassagem desonesta na pista.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 12/10/2014.
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