A longa estrada já percorrida no trato com sistemas eleitorais — coisa de 20 anos — permite ao cientista político Jairo Nicolau um olhar realista e prático sobre o momento político-jurídico-policial vivido pelo País. De um lado, ele se preocupa com o “enorme abismo” em que caiu a vida parlamentar, comparada à que o País teve 15 ou 20 anos atrás. Um declínio que ocorreu, segundo ele, porque a política “deixou de ser um atrativo para segmentos da elite — intelectual, empresarial, jurídica, artística”.
De outro lado, ele espera que o novelão da reforma política se defina até outubro — para valer em 2018 — e traga pelo menos dois avanços: uma solução ajuizada para o financiamento de campanha e uma cláusula de barreira pequena, que “limpe a casa” mas viabilize a sobrevivência de legendas significativas. “Mais que isso, uma reordenação mais profunda, só a partir de 2019”, diz ele nesta entrevista a Gabriel Manzano.
Foram temas como esses que levaram o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro a lançar, no início do mês, o livro “Representantes de quem? – Os descaminhos do seu voto da urna à Câmara”. Atento ao desgaste da classe política e à desarrumação geral do sistema eleitoral brasileiro, Nicolau organizou, em capítulos didáticos, um histórico sobre assuntos como coligações e cláusula de barreira e qual a reforma política possível no momento. A seguir, os principais trechos da entrevista.
O que são esses descaminhos do voto citados em seu livro e por que eles existem?
Chamo de descaminhos a soma de situações nas quais a intenção original do eleitor, diante da urna, nada tem a ver com o resultado concreto de sua escolha. Alguém pode votar em um candidato liberal, como ocorreu em Pernambuco em 2014, e assim ajudar a eleger um nome do PC do B. Um candidato pode ser eleito tendo 200 ou 300 votos, tomando a vaga de outro com dezenas de milhares de votos. Em Roraima, um voto para deputado vale nove vezes mais que o de São Paulo. São exemplos de anormalidades que venho observando há mais de 20 anos. No livro, procuro analisar esses desacertos de forma simples e arriscar propostas para superá-los,
O sr. decidiu tratar do tema após assistir à sessão em que a Câmara aprovou o impeachment da presidente Dilma. Por quê?
Aquele 17 de abril de 2016 foi uma chance única de conhecermos de uma só vez todos os 513 eleitos da Casa — e a ideia que eles passaram foi de uma coisa caricata, um parlamento muito pior do que imaginávamos. Ao votar, pouquíssimos falaram do mérito, do certo ou errado no que estava em jogo. A imensa maioria falou de si, de suas crenças, sua família, de seus eleitores… A palavra “Deus” foi mencionada 48 vezes, e “filho”, 60. Achei que valia a pena refletir mais a respeito.
A seu ver, aqueles 513 representavam ou não um retrato do eleitorado do País?
Não se pode dizer que aquela Câmara não foi legitimamente eleita. Seu perfil sociológico — que não difere muito dos de outros países — é de um grupo com mais homens que mulheres, mais classe média do que tem na sociedade, com renda e escolaridade mais altas. E na outra ponta estava, e está, um eleitor que fica indignado com a qualidade dos seus representantes, mas que uma semana antes da eleição não tinha candidato a deputado e um mês depois já o havia esquecido.
O sr. já usou a palavra “abismo” ao comparar o nível da Câmara de hoje com as mais antigas. A que atribui essa enorme queda de qualidade?
Essa decadência é um tema que me intriga. Há um claro declínio da retórica parlamentar — mas eu não saberia explicar o porquê desse fenômeno. Comparando o nível de hoje com o de uma década e meia atrás, percebe-se de fato que caímos em um abismo gigantesco. Tenho a respeito uma hipótese que ainda precisa ser estudada.
Qual é?
É que a política, de certa maneira, deixou de ser um atrativo para segmentos da classe intelectual. Quantos escritores, professores universitários, temos hoje no Congresso? Um Florestan Fernandes, um FHC, formuladores, ideólogos no sentido próprio da palavra? E lideranças empresariais e artísticas? Quantos advogados constitucionalistas? Muito menos! Creio que por causa de tantos escândalos, da decepção com a política em si, essas elites se afastaram do mundo político. E isso fez muito mal ao País.
Mal de que forma?
Se você comparar até com eleições dos anos 80 ou 90, alguns eleitos de agora seriam quando muito cabos eleitorais de alguém. O que temos, hoje, é um Congresso marcado pela incapacidade de fazer qualquer reforma que não seja em benefício dos que estão lá. Ao mesmo tempo, a elite parlamentar tem sido muito afetada pelos escândalos. Com as delações, investigações e punições a que assistimos e ainda vamos assistir, ela vai sair pequena no fim do mandato. O que eu vejo é que, provavelmente, teremos em 2018 a maior taxa de renovação eleitoral da história do País. É só juntar a repulsa geral do eleitorado ao fato de que muitos nomes estarão impedidos de concorrer.
Nesse contexto, qual sua avaliação sobre os movimentos de rua? A que se deve, a seu ver, a baixa presença de público nas manifestações de ontem?
Eles são um resultado da crise de representatividade. Mas vivem diferentes ciclos. Em 2013 veio forte a ideia do “não me representa”, contra os políticos tradicionais. A partir de 2015, os protestos assumiram contornos diferentes, se desdobrando para o impeachment da presidente. Uma ideia forte, bem concreta, alavancada pelas primeiras denúncias da Lava Jato. Mas depois do impeachment a cruzada evoluiu para causas múltiplas, um tanto abstratas para o grande público — como ocorreu ontem — e já era previsível antes, até para os organizadores, que iria perder força. Mas esse não me parece o ponto mais importante.
Qual é o ponto importante?
É que não se faz democracia sem Congresso, sem eleições, sem o debate político tradicional. Minha preocupação é essa, esses movimentos funcionam pela negativa. Reforçam uma rejeição difusa à política, que já se traduziu no enorme número de votos brancos e nulos em 2016. Me pergunto aonde isso nos leva. Veja, em contraste, o caso espanhol. Os movimentos de rua, nascidos como os nossos, em breve tempo se traduziram na criação de dois partidos, o Podemos e o Ciudadanos. Fiquei impressionado ao assistir, na Espanha, a um congresso do Podemos, num ginásio lotado por 10 mil pessoas. Vi a empolgação com que discutiam suas teses. Era um partido no sentido clássico.
Isso não poderia acontecer por aqui também?
O que vemos até aqui são lideranças desses movimentos entrando e atuando em partidos já existentes. Entre os partidos novos, nenhum me parece representar um movimento definido, organizado. Mesmo a Rede, da Marina, não adquiriu peso nem volume. E junte aí a crise do PT, a sensação difusa e geral de que político não presta, o aumento regular e preocupante dos votos nulos e brancos e da abstenção. O clima de rejeição à política às vezes leva ao fascínio por lideranças fora do perfil tradicional.
No horizonte, além das delações, prisões e esforços dos políticos para salvar sua pele com novas leis, há uma reforma política em discussão. Qual a chance de ela melhorar as coisas?
O primeiro desafio é que ela seja aprovada até outubro, para valer já em 2018. Apesar de tudo o que vimos até aqui, entendo que é possível uma reforma pontual, dando um jeito em pelo menos dois temas urgentes. Um deles é o financiamento de campanha: o Congresso precisa regulamentar a norma estabelecida pelo STF.
De que forma?
Creio que não há apoio, no País, para se voltar ao financiamento de empresas a partidos. Nem espaço e dinheiro para uma eleição totalmente financiada por recursos públicos. Quem sabe uma saída seria impedir que o candidato rico possa se autofinanciar sem limites, como se viu em 2016. E estabelecer um teto real para doações, sem aquela fórmula de 10% da renda anual etc.
E o segundo tema urgente?
Estabelecer uma cláusula de barreira nacional pequena, algo como 1,5% do eleitorado. Teria um efeito positivo, sem afastar partidos relevantes. Se a reforma melhorar essas duas coisas, já será, nas atuais condições, um bom avanço. Talvez leve a uma política mais eficaz, num Congresso menos fragmentado.
A lista fechada tem futuro?
Já foi apresentada antes, na Câmara. Os deputados a sepultaram por 402 votos a 21. Não percebi fatos novos que levem os políticos a delegar sua sorte aos líderes da sigla.
E as reformas mais profundas, sobre voto obrigatório, coligações, parlamentarismo, novas regras para bancadas?
Em reformas mais profundas não acredito. Não há consenso. A atual legislatura já tentou três vezes e nada avançou. Algo melhor, acho que só a partir de 2019.
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