À frente da líder do mercado brasileiro de varejo de moda há 25 anos, o executivo José Galló diz que o ano de 2016 entrará para a história como o momento em que a população finalmente se deu conta de todos os problemas do País que vinham sendo jogados embaixo do tapete havia anos. “Havia muitas coisas que estavam na penumbra, escondidas. Em 2016, tudo ficou às claras. É uma série de coisas nada boas, infelizmente.”
A Renner, que conseguiu ganhar fatia de mercado na crise e crescer seu faturamento, que somou R$ 3,8 bilhões nos primeiros nove meses de 2016, diz ter trabalhado para “antever” os ventos ruins da economia. Segundo Galló, a varejista começou a mobilizar a equipe, ainda em 2014, para reduzir gastos e otimizar processos. Agora, mesmo depois de dois anos de depressão econômica, a varejista se prepara para um contínuo ciclo de crescimento no próximo ano (a empresa deve fechar 2016 com cerca de 50 inaugurações).
A seguir, os principais trechos da entrevista:
O Brasil passou por muitas mudanças em 2016? Como o senhor avalia este ano?
Acho que o grande avanço de 2016 foi ver a realidade como ela é. Havia muitas coisas que estavam na penumbra, escondidas. Em 2016, tudo ficou às claras. É uma série de coisas nada boas, infelizmente. Apareceu a realidade da União, dos Estados, da Previdência, dos municípios. Acredito que, para solucionar qualquer problema, é importante conhecer sua intensidade. Nesse caso, a realidade é feia, dura, preocupante.
E ter essa consciência gera que tipo de resultado?
As pessoas só se mobilizam quando elas tomam consciência das coisas. É o que está ocorrendo agora. E este deve ser o caminho importante para o Brasil deixar de jogar as coisas para baixo do tapete.
Tendo isso em mente, dá para antever algum avanço em 2017?
Eu vejo 2017 como um ano de estabilização e do início da solução desses problemas. E há duas coisas boas que já começam a se desenhar: a queda da inflação, que ajuda no poder aquisitivo das pessoas. Como consequência disso, há a tendência de queda nos juros.
E a instabilidade política, deve continuar a nos afetar?
Sim. A gente não pode ignorar que a Operação Lava Jato certamente trará novidades. Quanto mais membros da velha política, a dos conchavos, forem eliminados do jogo, melhor. Vai ser um processo de depuração dolorido, mas bom. Pode ser o espaço para que surjam novas lideranças, que pensem em prol do coletivo. As pessoas estão atentas, mobilizadas, vão cobrar, ir às ruas. Aos poucos começam a surgir novas lideranças, como o João Dória, em São Paulo, e o Nelson Marchezan, no Rio Grande do Sul.
A relação do empresário com o governo tem de mudar? Durante muitos anos, em alguns setores, ela foi pautada em subsídios.
O que fomenta os investimentos é a confiança. E, nesses últimos dez anos, o Brasil deixou de fazer muitas tarefas, como no caso da infraestrutura, que hoje está perto do caos. Isso significa que existe uma grande oportunidade de movimentar a economia. Mas, para que isso ocorra, é necessário confiança, que é decorrente de regras claras, de respeito aos contratos. Apesar de a gente estar vivendo todos os problemas atuais, o Brasil tem um sistema democrático e instituições que funcionam. Para trazer confiança, precisamos mostrar que a seriedade e a eficiência vão passar a dominar.
O que tem de mudar?
Passa pela aprovação da PEC do Teto e pela mudança na Previdência. É impossível não admitir que a Previdência está indo para o caos. Quem tenta se opor a isso hoje dá uma prova de demagogia, de populismo. É o político que está em busca só de votos e que tem de ser varrido deste País.
Com a crise, o consumidor passa a comprar de outra forma?
O consumidor está mais cauteloso. Procura pagar em menos prestações e até à vista. Percebemos uma menor utilização do crédito. O atual problema não é a falta de crédito, mas sim a resistência das pessoas em tomá-lo. Vivo o varejo há 30 anos e acho que existe consciência. Nunca houve uma crise de crédito no Brasil originada no consumidor. As pessoas hoje veem o crédito como um ativo e, se ficam com o nome negativado, têm sua vida bloqueada. Por isso, em tempos como os atuais, elas podem até ter renda disponível, mas não tomam crédito.
Mesmo com o fator crédito atrapalhando, o que tem ajudado a Renner a ter resultados acima da média do mercado?
Atuamos num negócio em que a compra está relacionada à emoção. Outra questão é que, quando o consumidor está inseguro, ele busca marcas fortes em todos os setores, como confecções, eletrodomésticos e medicamentos. Hoje, a Renner é a 13.ª marca mais valiosa do Brasil, segundo a Interbrand. Isso quer dizer que a marca tem uma proposta forte, que se materializa com coleções, com serviços, com experiências de compra positivas e preços adequados.
Enquanto a concorrência freia a abertura de lojas, a Renner está mantendo o plano de abertura de unidades. Por quê?
Acreditamos na nossa proposta. Não pensamos no ano que vem, mas no futuro. Afinal de contas, o mundo não vai acabar. E, neste cenário, há boas oportunidades de negociação. (Até setembro deste ano, foram 38 novas lojas das três marcas da empresa – YouCom, Camicado e Renner).
O sr. está há 25 anos à frente da Renner. Ter essa perspectiva ajuda nesse momento de crise?
Sem dúvida a experiência conta. Já passei momentos de 60% de inflação ao mês, uma série de restrições de crédito e crises mundiais. Isso dá certa calma para lidar com a situação de forma racional. Ninguém enfrenta uma crise sozinho. Então, é preciso conhecer o problema, para que a equipe esteja mobilizada na solução. A gente estava prevendo essa crise atual desde 2014. Foram dois anos para cortar, racionalizar, simplificar. Acho que só os mais jovens, que não tinham essa experiência anterior, acabaram demorando mais para entender como agir neste cenário.
Ou seja: voltamos ao início. Foi preciso ter coragem de falar de crise antes de anos tão positivos seguidos para a economia.
Exatamente. A gente agora sabe que o Estado brasileiro – União, Estados e municípios – vinha vivendo em um mundo irreal. Os políticos, como só vão ficar ali por um tempo, muitas vezes não têm a experiência para projetar o resultado de seus atos ao longo do tempo. Nós, do setor privado, estamos acostumados a trabalhar com projeção de cenários. Então, não foi difícil para prever o que estava por vir.
E quais eram as evidências de que a crise estava à espreita?
Era só observar as más notícias que se acumulavam, as bandalheiras que estavam sendo feitas em 2014, que só podíamos chegar ao cenário a que nós chegamos. Vendo tudo o que acontecia, o descuido com que se tratava a coisa pública, a irresponsabilidade na distribuição de recursos, era óbvio que a coisa não ia acabar bem. Infelizmente, quem vai pagar a conta, mais uma vez, é o sofrido povo brasileiro.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 12 de dezembro de 2016.
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