“Amar a Humanidade é fácil; difícil é amar o próximo.” (Nelson Rodrigues)
Poucas pessoas causaram mais mal à humanidade do que aquelas que se imbuíram sinceramente da crença de que lutavam em nome do povo. Quando este conceito abstrato passa a ser confundido com a própria pessoa, quando ela não mais consegue se distinguir do tal “povo”, eis onde mora o grande perigo. O nobre fim – libertar o povo de todas as opressões e mazelas – passa a justificar quaisquer meios. E ninguém melhor do que Robespierre para ilustrar este risco.
Durante os últimos cinco meses de vida, quando concentrou um poder praticamente tirânico sobre a França, mais de duas mil pessoas foram guilhotinadas em Paris, uma quantidade mais de cinco vezes superior ao que havia sido morta nos onze meses que precederam o reinado do terror pessoal de Robespierre. Na biografia de Ruth Scurr sobre esta importante figura da Revolução Francesa, o próprio título já resume de forma sucinta a imagem desse perigo: “Pureza Fatal”.
Não teria sido a hipocrisia, ou mesmo as ambições materiais que tornaram Robespierre uma ameaça tão grande à liberdade; e sim sua total convicção de que ele e o povo eram uma só coisa. O Incorruptível, como era conhecido, seria a mão sangrenta executando com fanatismo as idéias de Rousseau. Robespierre, vestido com a capa da pureza moral, seria o executor da “vontade geral”. A visão de uma sociedade ideal, livre dos “pecados” da aristocracia e da miséria, faria com que ele acreditasse, de forma insana, ser o instrumento da Providência que levaria a França para um futuro perfeito.
Os fatores psicológicos que levam alguém a tal crença podem ser vários e difíceis de apreender. Alguns relatos sobre a vida escolar de Robespierre, entretanto, podem ajudar a lançar uma luz sobre a questão. Segundo algumas fontes, ele seria um garoto extremamente invejoso e apresentava um egoísmo subversivo, além de um orgulho excessivo. Que o Antigo Regime era um sistema totalmente injusto, isso é fato. Mas o grau de “revanchismo” que Robespierre adotou parece típico dos invejosos, aqueles que preferem destruir para não mais conviver com as diferenças que tanto incomodam.
A busca da igualdade seria levada a um extremo patológico. Apenas o “povo” é puro, assim como ele, que personifica esse povo. Aqueles que ainda não são dignos do Paraíso terrestre precisam ser regenerados, ainda que sob o terror. O intenso amor-próprio autocentrado, seguindo os passos de seu ídolo Rousseau, que se considerava a pessoa mais pura do mundo, ajudaria a justificar perante sua própria consciência seus terríveis crimes. Todos deveriam aceitar sua extrema virtude, por bem ou por mal. Em suma, um delírio de grandeza digno do divã do próprio Freud.
Os pobres haviam se tornado uma abstração coletiva, santificados por sua retórica, e seriam libertados por ele, o escolhido do povo. Nada poderia ficar no caminho entre ele e seus ideais. Quem eventualmente discordasse de alguma coisa, ainda que relativamente insignificante, seria visto como um “inimigo do povo”. Aquele que questionasse seus métodos era um traidor da Pátria, um contra-revolucionário. Até mesmo seu antigo amigo e aliado, Danton, seria vítima de sua paranóia e acabaria guilhotinado também. A soberania popular precisava predominar, já que a vontade do povo é tudo, a fonte da Justiça. E ele, Robespierre, falava em nome do povo.
A certeza de Robespierre parece total. Ele nunca demonstrava arrependimento de nada, jamais reconhecia publicamente algum erro. Como diz a historiadora, “se ele estivesse errado, o povo também estaria, e Rousseau assegurara-lhe que esse simplesmente não poderia ser o caso”. Mirabeau teria percebido essa perigosa convicção, comentando: “Esse homem vai longe, ele acredita em tudo o que diz”. E de fato, Robespierre foi mais longe do que qualquer um poderia imaginar. Ele foi um dos grandes responsáveis pela escalada de violência durante a Revolução, pelo degolamento do rei, pela prisão de milhares de inocentes, enfim, pela radicalização dos jacobinos que lançaram o país numa guerra civil sangrenta. Em nome da paz, Robespierre ajudou a criar o Tribunal Revolucionário, que acabaria condenando inúmeras pessoas à guilhotina pelos motivos mais banais.
Nada disso passou despercebido pelos seus oponentes, que o acusaram de várias coisas diferentes. O marquês de Condorcet, um dos deputados girondinos, escreveu que Robespierre tinha apenas uma missão, “falar, e fala incessantemente; ele cria discípulos”. Acrescentou ainda que ele “diz-se amigo dos humildes e dos fracos, deixa-se seguir por mulheres e pelos pobres de espírito, recebendo a adoração deles com seriedade”. Enfim, Robespierre seria um “padre e nunca será nada além de um padre”. Ele pregava para uma seita, despertava a reverência dos ignorantes, que o viam como instrumento para sua sede de violência. Robespierre ajudou muito a abrir os portões da barbárie. O povo “puro” se mostraria, de fato, uma turba de vândalos e assassinos.
O julgamento popular pregado por Robespierre seguia a ética do linchamento. Quem precisa de tribunais legais quando se tem o povo para julgar? Robespierre, defendendo a execução do rei, escreveu: “Um povo não julga como um tribunal. Ele não determina sentenças, mas arremessa raios; ele não condena reis, mas os atira no abismo; tal justiça é tão atraente quanto a justiça dos tribunais”. Adotando a estratégia do duplipensar descrita por Orwell, Robespierre tentou se convencer que violência era paz. Na defesa da permanência do Terror, ele escreveu: “O terror nada mais é do que justiça, imediata, severa e inflexível. Ele é, portanto, uma emanação da virtude, resultando da aplicação da democracia às necessidades mais prementes do país”. Para aquele que não se importava com indivíduos, apenas com o “povo”, o terror passou a ser um meio necessário para seu nobre fim.
Nada poderia abalar sua crença de que sua vida era realmente dedicada ao melhor para o povo, nem mesmo o banho de sangue em Paris e a miséria espalhada por toda França. Mais cansado e desiludido, Robespierre constatou que “existem poucos homens generosos que amam a virtude por si só e desejam ardentemente a felicidade do povo”, naturalmente se incluindo nesse grupo seleto. O fracasso da Revolução não poderia ser fruto dos meios adotados por ele; tinha que ser culpa dos próprios homens, que não eram tão virtuosos como ele próprio.
A mesma postura seria vista nos comunistas mais tarde, que, apesar da desgraça que sua ideologia trouxe ao mundo, jamais aceitariam culpar o próprio sistema defendido. Trata-se de uma verdadeira tirania da visão, onde somente eles possuem o monopólio da virtude. Quem não compartilha de suas crenças é um “inimigo do povo”, um burguês alienado, um egoísta insensível. Quantos crimes cometidos em nome da igualdade! O povo teria mais chances de viver melhor se aprendesse a desconfiar de todo aquele “profeta” que jura falar em seu nome. O grande problema é que o povo está muito longe de ser aquela maravilha idealizada por certos filósofos. Não é à toa que tiranias acompanham a humanidade desde sempre.
O povo teria mais chances de viver melhor se aprendesse a desconfiar de todo “profeta” que jura falar em seu nome. http://bit.ly/8bXy2g