Demóstenes perdeu o pai aos 7 anos. Sua herança foi roubada por tutores. Abriu um processo, os ladrões recorreram, ele perdeu. Menino, Demóstenes assistiu a um julgamento no qual um orador brilhante mudou a opinião pública. Demóstenes invejou sua glória e ficou impressionado com o poder da palavra. Pensou, então, em ser um grande orador mas o sonho parecia impossível pois, como o Rei George VI da vida e da fita, era gago. Corajoso, Demóstenes foi à luta. Curou a gaguez declamando poemas diante do mar, contra o vento; forçando-se a falar (como fazem alguns políticos) com pedras na boca. Graças a esse extenuante treinamento, Demóstenes foi o maior orador da Grécia.
Como um democrata, dedicou sua vida à defesa uma Atenas ameaçada por Filipe II, da Macedônia, pai do não menos hollywoodiano Alexandre, o Grande. Demóstenes escreveu inúmeros discursos e alguns roteiros com o objetivo de conclamar os atenienses, mas Felipe II venceu.
No ano 335 a.C., Demóstenes foi condenado por facilitar a fuga de um ministro de Alexandre de Atenas. Recebeu uma boa grana, mas, como não estava em Brasília, foi preso, mas conseguiu fugir, exilando-se de Atenas por um longo período. Na Grécia antiga os oradores não tinham imunidade.
Após a morte de Alexandre, Demóstenes volta do exílio e retoma a vida pública. Alia-se imediatamente à revolta contra o ditador macedônio Antípatro, mas perde. Exila-se no templo de Poseidon, faz algumas palestras a peso de ouro para alguns mercadores, mas, vendo-se cercado pelos soldados do inimigo, Demóstenes termina com a própria vida tomando veneno.
Em 322 antes de Cristo, os políticos se suicidavam quando cometiam malfeitos. No Brasil, apenas Vargas perpetrou o gesto extremo de um suicídio de honra. Neste mundo cada vez mais ambíguo no qual tentamos viver, essa sensibilidade com a moral coletiva só tem ocorrido no Japão, que os políticos e os financistas de Wall Street dizem ser um país exótico…
John Winthrop (1588-1649) chegou à América com a intenção de construir uma comunidade utópica – uma nova Jerusalém numa “nova” Inglaterra. Aprendi isso com o Robert Bellah do livro “Habits of the Heart” (“Hábitos do coração”). Nele, há uma recapitulação desse messianismo fundado em princípios mais do que em santos e pessoas, como é o caso ibérico e brasileiro.
John Winthrop foi o primeiro governador eleito da Colônia da Baía de Massachusetts. Seu objetivo não era enriquecer, mas criar uma comunidade na qual a prosperidade sinalizava aprovação divina e por isso o seu exemplo como homem público merece ser relembrado nestes tempos de Brasil que se torna uma sociedade de massa, mas que ainda tem uma vida pública entupida de leis, mas carente de ética.
Durante os seus 12 mandatos como governador, Winthrop foi exemplar e inovador. Moderação e um bom-senso extraordinário caracterizam sua administração. Conta-se que durante um inverno particularmente longo e rigoroso a lenha de Winthrop era roubada por um vizinho pobre. O governador mandou chamá-lo e ordenou que, devido à severidade do inverno e às suas necessidades, ele tinha permissão para apanhar toda a lenha de que precisasse durante aquela temporada. Com isso, dizia Winthrop a seus amigos, ele havia curado o homem do roubo.
Alguns dos nossos políticos têm dupla personalidade, mas, como eu tentei mostrar em “Carnavais, malandros e heróis”, o Brasil tem uma duplicidade de raiz. Ele é feito de leis universais (válidas para todos), mas, tal como o barqueiro napolitano de Max Weber, nós não podemos cobrar dos parentes, cobramos menos dos amigos, cobramos demasiado dos desconhecidos, e cobramos estupidamente (com a devida comissão para pessoas e partido) quando o passageiro é o governo. Dois pesos e medidas levados ao extremo acabam em despotismo (os nossos fazem apenas “malfeitos” e são blindados); destituem de ética a impessoalidade do que é público. Até hoje ainda não admitimos que um “homem público” simplesmente não tem “vida privada” porque ele não é gerente de coisas sem dono; é – isso sim – um administrador do que pertence à sua coletividade.
É falsa essa apropriação do público pelo privado porque os eleitos não são donos de coisa alguma; são simplesmente responsáveis pelo que é de todos. O problema é que vemos como anomalias um traço de um Brasil que até hoje não quer saber se é um país de família, um clube de compadres e amigos – ou um sistema de instituições públicas. O governador Winthrop não leu Hirschman, mas soube domar a paixão do roubo, transformando-a em interesse. Aceitou a necessidade e, regulando o furto, tornou o oculto em algo aberto, domesticável e virtuoso. Nós preferimos legislar negativamente e assim transformamos costumes em crime.
É impossível deter as Cachoeiras de desejos, sobretudo quando são proibidos por lei, mas aceitos placidamente pelos costumes da terra, como a amizade e a malandragem. Essas coisas que viciam, como disse um deputado mineiro que construiu um castelo feudal. E, mais que isso, a certeza de que o governo tem muito mais do que pode administrar. Sobretudo quando se sabe que aquilo que é de todos (ainda) não é de ninguém. Como prender bandidos num país onde mentir em causa própria é um princípio constitutivo do sistema legal?
Fonte: O Globo, 11/04/2012
Políticos da atualidade acomodam-se facilmente numa zona cinzenta situada entre o certo e o errado. Órfãos da Ética, são destituídos de visão moral. Estes picaretas não são encontrados só no Brasil, mas em todo canto da Terra.