A abertura do mercado na China é lenta e seletiva, mas aos poucos vai aumentar a importação de algodão, milho, trigo e açúcar. A afirmação é do especialista em comércio exterior Marcos Jank, vice-presidente de desenvolvimento de negócios e assuntos corporativos da BRF para a região asiática, baseado em Cingapura.
Jank defende acordos estratégicos para o Brasil, “entrar para valer nas cadeias de valor da Ásia”, e não ser apenas um fornecedor de matérias primas para ração.
Segundo ele, uma parceria estratégica agregaria diversidade de suprimento para os países daquela região. “Somos, por exemplo, isentos da gripe aviária. A alta qualidade de nossos produtos, derivada da nossa longa e vasta experiência com exportações para os mercados mais exigentes do mundo, é outra vantagem”, acrescenta Jank.
Globo Rural – O senhor disse em artigo recente que a China começa a migrar para uma visão que vai substituir o mantra secular da “autossuficiência a qualquer custo”. Qual é o impacto disso para o agronegócio brasileiro?
A China tem uma visão estratégica de longo prazo para as commodities agropecuárias e alimentares. Apesar dos grandes aumentos de produtividade ocorridos nos anos recentes, o país assume que não conseguirá manter sua política de autossuficiência. A China se tornou o maior importador mundial de produtos agropecuários. O primeiro produto de que ela abriu mão e passou a depender de grandes volumes de importações foi a soja, fato motivador da incrível revolução agrícola a que assistimos no centro-oeste brasileiro nas últimas décadas, nascida do binômio boi-soja. Mas, pouco a pouco, a China vai aumentando a importação de algodão, milho, trigo e açúcar.
Globo Rural – E no caso das carnes, a China já está aberta?
A abertura chinesa é estratégica, lenta e seletiva. Apesar do crescimento das importações, frangos e suínos ainda são bastante protegidos na China, por conta de um complexo sistema de habilitação de plantas na exportação. É assim não só na China, mas em toda a Ásia. Esse imenso continente é bastante aberto para importar grãos, mas fechado para carnes. Nos suínos e aves, a China continuará privilegiando a segurança alimentar, de um lado, e o emprego rural, do outro. O país responde por metade do consumo mundial de suínos e considera o produto estratégico para o equilíbrio de seus agricultores. Mas, ainda assim, este ano, por conta de uma queda no rebanho, a China deve comprar 2 milhões de toneladas de carne suína, o maior volume de importação do produto da história. Com o tempo, a tendência é buscar a segurança alimentar olhando concomitantemente para a competitividade do produtor doméstico e o mercado mundial, ao mesmo em que o país revê o papel de suas estatais.
Globo Rural – A política comercial agrícola da China também é feita pelas suas empresas estatais?
Sim, a China possui grandes empresas atuando no segmento de commodities agropecuárias e alimentos, a maioria delas estatais. Inicialmente, essas empresas concentraram seus esforços no desenvolvimento do imenso mercado doméstico, apoiando a política de autossuficiência. Mas, agora, elas estão se reestruturando para se tornarem mais eficientes. Ao mesmo tempo, seja via crescimento orgânico, seja via aquisições, as grandes estatais chinesas tendem a se internacionalizar cada vez mais, principalmente na América do Sul e na África, que são as regiões de maior potencial agrícola. Elas farão o que for mais conveniente em cada ambiente institucional, porém, sempre buscando manter o controle acionário nas operações em que se envolvem. Importações seletivas e internacionalização das multinacionais chinesas, com controle societário, são a base da nova política de segurança alimentar chinesa.
Globo Rural – E como o Brasil fica nessa história?
Sabemos que o Brasil tem um papel central e estratégico nessa nova fase de crescimento e abertura da China. Na realidade, apesar de produtos agropecuários e alimentos serem produzidos em quase todas as latitudes, poucos são os países que conseguem de fato gerar volumes expressivos de excedentes exportáveis. E as áreas do planeta que concentram a maior parte da população mundial, onde o crescimento da renda per capita é mais elevado, são também aquelas que mais carecem de recursos naturais. E não é só China. A Asean (Associação de Nações do Sudeste Asiático), por exemplo, é um bloco de dez países do Sudeste Asiático que acaba de constituir a segunda maior comunidade econômica do planeta, após a União Europeia. São 630 milhões de habitantes vivendo numa área que é a metade da brasileira. Além disso, tem a Índia, que hoje cresce mais do que a China e tem um desafio incrível na área agrícola. E mais a frente vem a África. Ou seja, temos de planejar nosso futuro no curto, médio e longo prazos.
Globo Rural – Como assim?
Um bom exemplo é o caso do milho e da soja. Vamos ser apenas fornecedores de ração para a Ásia ou faremos parcerias estratégicas com aqueles países para avançar nas cadeias de valor do agronegócio? Hoje, basicamente exportamos grãos que atravessam metade do Brasil em estradas ruins e caminhões pequenos; depois, cruzam o planeta em navios pequenos, para então alimentar suínos e aves no Oriente. Se conseguirmos abrir mais frigoríficos brasileiros para exportação para a Ásia, poderíamos exportar muito mais carnes, que valem de quatro a dez vezes mais por tonelada do que os grãos, além de trazerem ganhos significativos em termos de balanço hídrico, energético e de carbono. Deveríamos entrar para valer nas cadeias de valor da Ásia. Além da segurança alimentar estratégica (food security), que tem a ver com quantidade ofertada, o grande desafio daquela região é a segurança do alimento (food safety), que tem a ver com qualidade e menor risco sanitário. Uma parceria estratégica com países daquela região agregaria diversidade de suprimento, menor risco de doenças – somos, por exemplo, isentos da gripe aviária – e a alta qualidade de nossos produtos, derivada de nossa longa e vasta experiência com exportações para os mercados mais exigentes do mundo. Essa mesma parceria poderia também gerar os investimentos que o Brasil precisa realizar em infraestrutura. Ou seja, precisamos sofisticar a relação com o sul e sudeste da Ásia, desenvolvendo um verdadeiro jogo de ganha-ganha com uma região que concentra, sozinha, mais da metade da população do mundo em menos de 5% da área da Terra.
Globo Rural – Como é trabalhar na Ásia, uma região de cultura tão diferente da brasileira?
Ao contrário dos continentes europeu e americano, onde os grandes impérios convergiram para uma certa similaridade étnica, linguística, cultural e religiosa, a palavra que melhor sintetiza a Ásia é “multiplicidade”. Países muito ricos têm fronteiras com vizinhos extremamente pobres, variando de nações continentais como a China e arquipélagos como a Indonésia a cidades-nação como Cingapura. A geopolítica tem imensa importância em toda a região, como, por exemplo, os conflitos atuais no mar do sul da China, as duas Coreias, e a disputa da China com Japão, Taiwan e Índia. Trata-se de um universo de realidades pouco conhecidas no Brasil, mas que representam possivelmente a maior oportunidade que temos no mundo atual, principalmente para o agronegócio. Uma região que carece de recursos naturais, com um PIB per capita crescendo mais de 5% ao ano, que se urbaniza rapidamente e aumenta o consumo de carboidratos e proteínas não pode ser relegada a segundo plano.
Globo Rural – O que se pode esperar da política externa brasileira em termos de acordos comerciais, após anos de prioridade às negociações com o Mercosul?
Creio que as novas diretrizes da política comercial anunciadas pelo ministro José Serra fazem todo o sentido, como, por exemplo, a retomada dos acordos bi e plurilaterais. Ficamos relativamente parados nessa área nos últimos 12 anos. Agora, é hora de retomar, começando com uma profunda reestruturação do Mercosul. Mas acho que as idiossincrasias brasileiras irão dificultar o fechamento de grandes acordos no curto prazo. Achei ótima a decisão de redefinir as prioridades e a forma de funcionamento da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex) e a decisão de dar maior estatura à Câmara de Comércio Exterior (Camex), agora sob a Presidência da República. Comparando com outros países, o que mais faz falta ao Brasil é coordenação e foco. Não precisamos reinventar a roda. Basta olhar o que países menores que a gente, como Austrália e Nova Zelândia, fizeram na Ásia nos últimos anos em termos de presença física, acordos comerciais, grandes negócios e adição de valor nas cadeias produtivas do agro.
Fonte: Revista Globo Rural.
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