Ao ler a aula de Lula sobre como ser amigo de Jesus, sem esquecer as lições de Judas, algo básico para governar o País, fui tomado pela lembrança de um antigo seminário que discutia “identidades”.
O curso, ministrado em Harvard pelo professor-visitante Richard Moneygrand, atraiu muitos alunos, explodindo de inveja os mestres da casa pelo sucesso do peregrino que, marginal ao pomposo estilo harvardiano, tocava numa série de problemas então tabus para a sociologia comparativa dos anos 60. Por exemplo, começar falando das identidades locais (como ser inglês, escocês, galês e irlandês) em vez de produzir a lista batida de atributos dos outros povos, sem indicar que todos eram lidos a partir da perspectiva americana. Assim, em vez dos velhos estereótipos que consagravam os latinos como povos sem ética, como gente que vivia bebendo tequila e só pensava naquilo, Moneygrand abriu seu seminário com uma pergunta paradoxal: Por que – perguntou ele – Deus inventou o uísque? E diante de uma turma aturdida pela ausência das citações de Platão, Mauss ou Franz Boas ele respondia com uma gargalhada antiacadêmica: “Ora! Porque se não fosse o uísque, os irlandeses seriam os donos do mundo!”
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Naquele seminário eu aprendi que as eventuais consciências de si e dos outros eram efêmeras, deslizantes e trabalhosas. Descobri também que todas as coletividades lidavam sempre com muitos níveis e dois lados. Para os ingleses, os irlandeses eram católicos, malucos e bêbados; para os irlandeses, porém, os ingleses eram hipócritas e sexualmente indecisos. Mas, no Brasil, irlandeses e ingleses viravam “anglos” pontuais e civilizados, por oposição ao bando de mal-educados mulatos locais. Ser isso ou aquilo tinha a ver com o lugar de onde se falava, como acenou Lula.
Não há povo que não se veja pelo direito e pelo avesso, pois as identidades, como os mitos, os filmes policiais, os westerns e as óperas têm sempre um outro lado, dizia Richard Moneygrand. “Nós, americanos, por exemplo, temos o mito do controle. O ideal de sermos “cool” como um Shane, mas a histeria, esse reverso do autodomínio, está à flor da pele. Criamos a elegância de Fred Astaire e a imbecilidade dos Três Patetas e de Dean Martin & Jerry Lewis. No drama, fomos de Hemingway, Riskin, Chayefsky, Ford e Capra, sem esquecer os mestres dos quadrinhos, Hal Foster, Alex Raymond e Burne Hogarth, para Oliver Stone, Stallone e Tarantino!”
Não é – complementava o mestre – que os latinos não tenham senso de pontualidade! É que, para eles, o mais importante é aquele que completa a cena, por isso os que se pensam como mais importantes, chegam por último. E como todos são importantes, eles aguardam a chegada dos outros, de modo que qualquer ato público é mais do que uma mera inauguração ou comício político disfarçado. É um concurso de hierarquias pessoais. A pontualidade, essa exigência dos sistemas ordenados pela igualdade, mas que também comportam super-herarquias, como o racismo jurídico, é um sinal de inferioridade. Neles, chegar primeiro é ser inferior. Dizer que todos os tipos sociais são mitos é pura burrice, pois tudo o que é humano é, por definição, mito, ideal e, no fundo, perda de tempo, dizia ele para meus colegas loirinhos, alarmados com o seu realismo.
Como no Brasil tudo é misturado, vocês tem problematizado a vida pela lei feita para separar. Por isso, seus heróis são por ela balizados. O bandido modernamente idolatrado com a enorme contribuição dos regimes de exceção, como Robin Hood ou, no dizer de Eric Hobsbawn – um historiador inglês que jamais viveu numa cidade favelizada e comandada por criminosos -, como “bandido social”, ignora a lei. Já quem a segue à risca, é o “caxias”, o “cu de ferro” e o trabalhador. Entre essas duas posições, porém, há a multidão dos “homens livres” ou “babacas”. Os “otários” e os “trouxas” que não conhecem as razões profundas da lei, como ocorre no caso dos águias, sabidos, espertos e “malandros” – esses Pedro Malasartes que sabem que, entre seguir ou não a lei, há um vasto espaço. A recusa em ver a lei como limite, revela a reação brasileira à modernidade ocidental. Pois a inspiração da burla não é igualitária, mas aristocrática. Os malandros apenas confirmam o que os reis e os nobres (e hoje as “elites”) realizam: eles, como os grandes futebolistas, driblam a lei. Vejam bem: os malandros não rompem com elas; eles passam por suas brechas. Eles relativizam o limite, tornando-os elásticos, mostrando como é complexa a operação de uma sociedade que tem dois ideais: a do Pobre (que nada pode) e a do Príncipe (que pode tudo). O malandro revela o poder do costume contra a lei e traz à tona o paradoxo brasileiro de segui-la, pois se a malandragem é um ideal, como seguir a lei sem ser um otário? Como diz a música de Jorge Ben: “Se o malandro soubesse como é bom ser honesto, ele seria honesto só de malandragem”…
Lula está correto: é difícil ficar com Jesus num país de Judas. Afinal, o que seria dos malandros se não fossem os trouxas? Ou dos presentes sem os embrulhos?
Apenas uma pequena discordância no brilhante artigo. Dean Martin e Jerry Lewis não foram imbecis. Dean tinha uma voz maravilhosa, e Jerry era um grande comediante. Pode ser que os dois juntos fizessem uma dupla que teria que ser vista com menos rigor. Digamos que os seus filmes fossem ótimas chanchadas.
“É que, para eles, o mais importante é aquele que completa a cena, por isso os que se pensam como mais importantes, chegam por último.”
Até quando iremos insistir em sermos os últimos? Ou melhor, porque não ficamos logo em último lugar em Tudo e assim vivemos felizes como imbecis?Se é que a maioria da população já não gosta de viver.