Com base em nova lei de comunicação, Xavier Bonilla foi obrigado a “retificar” caricatura que governo considerou ofensiva. Jornal também foi multado
Aprovada em meados de 2013, a Lei de Comunicação que cerceia a liberdade de imprensa no Equador teve como primeiro alvo um cartunista. No dia 28 de dezembro, o jornal El Universo publicou uma charge de Xavier Bonilla na qual policiais levam da casa de Fernando Villavicencio, jornalista assessor de um parlamentar da oposição, computadores com ‘denúncias de corrupção’, conforme as declarações do jornalista. A punição para Bonil, como é conhecido, foi retificar a charge. “O governo deveria ter pedido o direito de resposta. E é muito importante notar a diferença, pois, ao contrário de cifras e dados frios, uma opinião não se retifica”, disse o desenhista ao site de VEJA. O jornal El Universo foi condenado a pagar multa de 2% de todo o seu faturamento nos últimos três meses. “O jornal foi o primeiro a ser multado por ter publicado o meu desenho, ou seja, por não ter me censurado”, argumentou.
Diante da mordaça imposta à imprensa pela nova lei, o caricaturista afirma que pretende seguir desenhando para denunciar os abusos. “Nossa missão agora é dizer ao mundo que no Equador se restringem as liberdades, especialmente as de expressão e opinião.” Confira a entrevista:
Veja – Você foi a primeira pessoa a ser punida pela Lei de Comunicação do Equador. Em que consiste essa lei e como ela limita o trabalho da imprensa?
Xavier Bonilla – Fui o primeiro punido com o pedido de “retificar” uma caricatura. E o jornal El Universo, que publica os meus trabalhos, foi o primeiro a ser multado por ter publicado o desenho, ou seja, por não ter me censurado. O governo não necessitou de uma Lei de Comunicação no passado para cometer alguns abusos e atropelos, mas finalmente eles a expediram para ter mais agilidade, por exemplo, com a criação da Superintendência que administra punições. O governo armou uma grande armadilha ao estabelecer a comunicação e a informação como um serviço público, e não como um serviço ao público, o que as equipara ao abastecimento de água potável, à telefonia e à eletricidade. Desse modo, a informação passa a ser algo controlado pelo Estado e por seus funcionários.
Bonilla – A lei tem muitas subjetividades que ficam a cargo do funcionário que a julga. Ela castiga a “omissão intencional” de informação, por exemplo. Mas quem determina que houve intenção? Ela estabelece sanções aos meios de comunicação que não publicam assuntos de relevância pública. Mas quem determina o que é de relevância pública?
Também se criou a figura do “defensor de audiências”, que é um funcionário estatal que estará dentro de cada meio de comunicação e poderá sugerir diretrizes para “impedir que os interesses das audiências sejam afetados”. Isso não é um censor? Uma investigação jornalística também pode ser interrompida se um funcionário envolvido decidir não dar sua versão durante um ano. Também não podemos publicar algo que faça parte de um processo na Justiça. Na prática, isso silencia a investigação e a denúncia.
Veja – A retificação da charge no El Universo foi suficiente para o governo?
Bonilla – O pedido de retificar uma caricatura já foi absurdo. Tomaram como pretexto o texto que eu escrevi no pé do desenho, baseado na informação passada pelo investigado (Fernando Villavicencio), dono dos computadores requisitados. Eles apontaram que o texto “deslegitimava a autoridade” e “apoiava a agitação social”. Disseram-me que eu devia ter colocado aspas no texto e me obrigaram a fazer essa retificação. Mas pergunto: essa falta de aspas justifica uma indecente multa ao jornal?
Logo depois, o presidente vociferou palavras como “mentiroso”, “covarde”, “doente de ódio” em sucessivas apresentações de seu programa transmitido aos sábados – que duram 3 horas no rádio e na televisão. No começo, eu pensei que ele estava fazendo uma lista entre os membros de seu partido, mas logo entendi que esses insultos eram dirigidos a mim. A Secretaria de Comunicação da Presidência também ordenou um espaço de 10 minutos em vários canais de televisão, que se repetia nos períodos da manhã, tarde e noite, para que ele pudesse se referir à minha caricatura dizendo que era um “pronunciamento político” que devia ser punido. Após a sanção administrativa, a sanção midiática continuou com o dinheiro de todos os equatorianos.
Veja – O que a imprensa tem feito para apontar as irregularidades ou abusos do governo?
Bonilla – Cada vez mais é difícil fazer um jornalismo investigativo. Embora atualmente existam tentativas de desenvolver o jornalismo na internet, o círculo está se fechando. Além disso, com a punição ao diário El Universo, se envia uma mensagem aos meios de comunicação de que deve haver uma censura aos seus colunistas ou caricaturistas para que não arquem com multas altas. Nossa missão agora é dizer ao mundo que no Equador se restringem as liberdades, especialmente as de expressão e opinião.
Veja – A polícia também foi contestada no trabalho censurado. Houve alguma manifestação de descontentamento semelhante à do governo?
Bonilla – A polícia é um instrumento de repressão em todos os estados. Na minha caricatura, nem a polícia nem a promotoria expressaram nenhum mal-estar, mesmo com ambos citados no pé do desenho. Foi o presidente da República que, em 4 de janeiro, recriminou meu trabalho, e a 10ª Superintendência de Comunicação teve uma atuação ‘de ofício’ para exigir uma “retificação”. Em todo caso, o governo deveria ter pedido direito à réplica. E é muito importante notar a diferença, pois, ao contrário de cifras e dados frios, uma opinião não se retifica.
Veja – Não é contraditório para o governo equatoriano limitar as liberdades de imprensa quando diz defender pessoas como Julian Assange e Edward Snowden por considerar que suas ações “levam luz e transparência aos fatos”?
Bonilla – Totalmente contraditório. O governo se diz defensor das liberdades no estrangeiro, mas reprime as mesmas liberdades dentro do país. Sem provas, o governo acusou (o jornalista e opositor) Fernando Villavicencio e o membro da assembleia Kléber Jiménez de terem hackeado os e-mails da Presidência. Mas, semanas depois, os jornais oficialistas publicaram uma reportagem estigmatizando a ativista Martha Roldós, filha do falecido presidente Jaime Roldós, com informações que aparentemente foram obtidas após sua conta ser hackeada. O presidente fala em democratizar as vozes para punir os meios de comunicação de banqueiros devedores, mas só o faz para transmitir a única verdade oficial.
Veja – Você acha a liberdade de imprensa na América Latina tem sido ameaçada nos últimos anos?
Bonilla – Sempre existiu tensão entre o poder político e o jornalismo. O jornalismo não tem como função destituir governos. O seu trabalho é informar, e a população decide se continuará confiando em seu governo. Por isso esses governantes instauraram uma guerra contra os meios de comunicação privados para estabelecer uma única verdade e o silêncio. Há países onde há o risco de censura e, em outros, o risco de morte. Em ambos os casos isso é inaceitável.
Veja – Quais medidas você acha que deveriam ser adotadas nos países latino-americanos para proteger a liberdade de imprensa e de expressão?
Bonilla – O essencial seria que se desenvolvesse um jornalismo público, mas sem a interferência do governo. E que se respeite a diversidade de perspectivas e não haja punições para a opinião de quem pensa diferente, como ocorre agora. Por isso não acredito que os governos latino-americanos tomarão essas medidas. No Equador, o presidente decretou um forte aumento salarial somente para os jornalistas. Isso é bom, mas ele não aumentou os salários de médicos e professores porque a real intenção não foi melhorar o jornalismo, e sim colocar as empresas em uma situação difícil. Outras medidas desse tipo também estão em curso, como os novos impostos sobre o papel usado pelos jornais.
Veja – Como um cartunista pode ajudar a denunciar a situação da imprensa em países com governos autoritários e repressores?
Bonilla – O caricaturista trabalha sobre informações e também sobre percepções. O público é quem avalia se a sua percepção coincide com a do desenhista. No Equador, a caricatura vai ao encontro da informação jornalística. Por isso é muito correta aquela frase que diz que se algo te faz rir é porque há um fundo de verdade.
Fonte: Veja
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