Em artigo anterior, buscamos desfazer um equívoco acerca das diferenças supostamente existentes entre os governos FHC e Lula. Ele tratou do gasto público, com ênfase no gasto social e mostramos que não há um padrão de evolução do gasto público muito diferente entre os dois governos. Vamos agora tratar dos indicadores distributivos.
O senso comum, construído a partir da versão dos que defendem a política do governo Lula e atacam a de FHC, é a de que FHC teria se preocupado com a estabilidade, relegando a distribuição de renda a um segundo plano, enquanto que Lula teria resgatado a dívida social e privilegiado a distribuição de renda. Este último, em particular, frisa sempre que, antes dele, os governantes teriam agido apenas “em favor dos mais ricos”.
Houve melhoras importantes na distribuição de renda tanto no governo FHC como no de Lula.
Não há nada de errado em defender os feitos do governo Lula, que de fato promoveu avanços importantes em diversos aspectos da vida nacional. O que é errado é tentar imputar a quem o antecedeu males que não ocorreram. Quando se faz isso, corre-se o risco de nos parecermos um pouco aos antigos regimes soviéticos, quando sob o ditado de “rei morto, rei posto”, o novo ocupante do Kremlin retocava antigas fotografias e reescrevia a história, a ponto de levar um famoso cientista a declarar certa vez que “na Rússia, não há nada mais difícil de prever do que o passado”. Na luta política, houve parlamentares que, no afã de valorizar as medidas que estavam sendo tomadas por Lula, chegaram a dizer que “nunca antes” tinha sido feito isso ou aquilo no campo social, em flagrante agressão aos fatos. O objetivo desta curta série de dois artigos é apenas repor a verdade nos eixos. Um político pode mentir à vontade – algumas vezes, por oportunismo; outras, por ignorância. Já o economista tem o dever profissional de respeitar o rigor dos números. Vamos a eles, então.
Aqui apresentam-se duas tabelas. A primeira mostra as taxas de variação reais médias – usando como deflator o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) – de duas variáveis: o reajuste do salário mínimo e o das aposentadorias acima dele. A referência, em cada caso, foi o reajuste concedido em cada ano, comparado à data do último reajuste.
No caso do governo FHC, comparou-se o valor real do salário mínimo em abril de 2002 com o de setembro de 1994 – data do último aumento do governo Itamar – e calculou-se o reajuste médio de 8 anos. No caso do governo Lula, comparou-se o valor real da mesma variável por ocasião do aumento concedido em 2010 com o citado valor de abril de 2002 e calculou-se o reajuste médio de 8 anos. Procedimento análogo foi feito para as aposentadorias acima de um salário mínimo. A conclusão a que se chega é inequívoca: os reajustes do salário mínio foram parecidos, em média, nos dois governos – com aumento um pouco maior nos anos de Lula – e os aposentados que ganham acima do mínimo tiveram um aumento maior nos anos FHC – claro que, neste último caso, muito influenciado pelo salto da variável em 1995, o que significa que aqueles que se aposentaram depois disso não tiveram tal aumento. De qualquer forma, a tabela mostra que a tese de que a economia cresceu mais no governo Lula porque este teria aumentado mais o salário mínimo (“gerando um novo modelo de desenvolvimento, baseado no mercado interno”, conforme reza a cartilha) envolve um problema de lógica elementar: se essa fosse a razão do crescimento ter sido maior, a economia com FHC também deveria ter tido um crescimento próximo a 4 %.
A segunda tabela apresenta três indicadores: 1) o índice de Gini, lembrando que quanto maior é este, maior é a desigualdade; 2) a proporção da renda total do país em mãos dos 20% mais pobres e dos 10% mais ricos; e 3) o coeficiente entre a renda detida por esses dois grupos. É claro que a comparação não é perfeita, porque em 1994 não tivemos a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e em 2010 houve censo e não PNAD, o que significa que na primeira comparação há uma diferença de 9 anos entre uma situação e outra; e, na segunda, de 6.
De qualquer forma, o que importa é a tendência e ela é clara: houve melhoras importantes na distribuição de renda – no sentido dos mais pobres ganharem espaço relativo e dos mais ricos perderem peso – tanto no governo FHC como no governo Lula. Insisto: os historiadores, daqui a 50 anos, terão dificuldades de diferenciar muito um governo de outro. Como bem disse o mestre José Murilo de Carvalho em entrevista ao Valor (20/08/2010), “vejo os dois governos como voltas de um círculo virtuoso que corre o risco de nos aproximar de uma democracia social”.
Fonte: “Valor Econômico”, 05/10/2011
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