O debate ideológico é algo permanente e universal. Ao longo das décadas e nos mais diversos países, ele vai se estabelecendo, com suas nuanças e as particularidades associadas a cada época e a cada país.
No Brasil, no eterno embate entre ortodoxos e heterodoxos no campo da economia, estes últimos tiveram o seu “momento 7 x 1” — em alusão à goleada sofrida pelo Brasil contra a Alemanha na Copa do Mundo de 2014 — com a derrocada do governo Dilma, em função do desastre do triênio 2014/2016, quando anos de permissividade acabaram cobrando um preço altíssimo para o país. Como a famigerada “nova matriz macroeconômica” do governo Dilma Rousseff — a rigor, em parte, já plantada nos anos finais do governo Lula — é simplesmente indefensável, na tentativa de “fincar estacas” e não perder muito terreno nas disputas políticas, os defensores de um maior ativismo governamental, aqui e ali, tentam manter seus lugares na trincheira não através da defesa da heterodoxia tupiniquim, e sim por meio de ataques aos — na visão dos críticos — supostos casos de fracasso da ortodoxia em outros países. Em particular, de acordo com essa narrativa capciosa, a zona do euro estaria ruindo devido às sequelas dos programas econômicos baseados na austeridade implantados após a crise de 2008. Trata-se de um completo equívoco.
Em primeiro lugar, nunca é demais lembrar que se há um país que se deu bem na área do euro nos últimos dez anos foi a Alemanha, que não é precisamente um caso de heterodoxia. Pelo contrário, se essa nação é o que é hoje na economia, é, entre outras coisas, pelas corajosas reformas empreendidas antes da conquista do poder pelo partido de Angela Merkel, nos tempos do chanceler Gerhard Schroeder e que fariam espumar de raiva os nossos ditos “movimentos sociais”.
Em segundo lugar, temos que recordar a frase antológica de Alexis Tsipras, ídolo das campanhas antirreformistas constatando as limitações impostas à Grécia pela realidade resultante de anos de farra fiscal: “A festa acabou”.
Finalmente, vamos aos fatos. Não vou entupir o leitor de números. Quero apenas registrar que, entre os países que mais têm se destacado na Europa recentemente pelo seu dinamismo relativo, estão justamente aqueles nos quais a terapia ortodoxa foi mais claramente adotada: Irlanda e Espanha. Ninguém é tolo a ponto de desconsiderar completamente os efeitos da crise, e na Espanha, em particular, os efeitos do elevado desemprego são conhecidos. E é perfeitamente compreensível que estejam por trás da perda de prestígio do governo Rajoy em relação a anos atrás. Não obstante o fato inegável de que a crise foi muito dura, também é uma verdade incontestável que o desemprego está começando a cair e que a Espanha tem se destacado nos últimos três anos pelo seu crescimento bastante elevado no contexto europeu. No campo político, anos de exercício do poder em um contexto difícil e um conjunto de sérias acusações de corrupção minaram a popularidade do governo, o que explica as dificuldades para compor uma nova maioria após a realização de duas eleições legislativas sucessivas no país. Nada disso, porém, ofusca a dinâmica positiva recente da economia espanhola. A ideia de que a ortodoxia fracassou na Espanha é errada. No caso da Grécia, até cabe o argumento de que a dosagem do remédio pela troika (FMI-União Europeia-Banco Central Europeu) foi inadequada, o que não isenta o país de responsabilidade pelo descalabro construído ao longo das décadas anteriores.
Precisamos encarar os fatos. A tentativa de ignorar os limites da economia levou ao desastre dos últimos anos. Agora, a reconstrução será dura. Será necessário adotar um duro ajuste fiscal, tornar o país mais competitivo, moderar o crescimento dos salários, aumentar fortemente a produtividade e, de um modo geral, lançar as bases para um crescimento que possa ser sustentável no tempo, e não uma expansão que se esgote anos depois. Não adianta nos iludirmos querendo imaginar que haverá atalhos que nos dispensem de uma longa lista de deveres de casa a fazer. Como disse certa vez o brasilianista Richard Moneygrand, ao cunhar uma expressão que considero genial, lembrada há poucos meses nesta mesma página, “o Brasil só vai sair do atoleiro quando aceitar que a realidade existe”.
Fonte: O Globo, 09/01/2017.
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