Eu sinto um cansaço regado a tédio quando ouço a frase: “De acordo com a lei ele (ou ela) pode pegar de 15 e 20 anos de prisão em regime fechado”. Ou seja, tudo vai — ou ia — no condicional que é o modo verbal da fábula. Se a realidade fosse desenhada como um filme de Hollywood dos anos 50, tudo daria certo neste mundo e não no outro. “Paradise now!” (paraíso agora), conforme exigiam meus amigos americanos no final dos anos 60.
A pegada do “pode pegar” é a pegadinha por onde passam os criminosos que — eis a vergonha — são também do governo ou da polícia. Tudo pode ou não acontecer como manda um figurino cuja paixão é certamente governada pela duplicidade. A dissimulação, conforme disse Roberto Schwarz — a combinação mais ou menos inocente e mais ou menos cruel dos opostos —, é a moeda corrente de uma sociedade até bem pouco tempo feliz e em paz com suas múltiplas éticas. Uma para o senhor e outra para o escravo; uma para o governante e outra para o cidadão.
No Brasil, o rio que separa o lícito do ilícito não é atravessado por um meio móvel — lanchas, canoas ou a nado. Não! Ele é ligado permanentemente por um meio imóvel: uma ponte maior do que a que liga o Rio a Niterói. Nesta ponte está o centro do assunto e o começo (ou o fim) da história.
Ele começou cedo, aos dez ou onze anos, quando afanava dinheirinhos da carteira do pai. Seus irmãos roubavam, ele afanava porque, sendo o filho mais velho, considerava que era o mais próximo, logo o que era de um era também do outro. Verbalizava para os irmãos e primos: o que é bom para o papai é bom para mim. O que é do papai — concluía sério — é meu!
Aos 15 anos, quando abandonou a escola e começou a frequentar a “zona”, que chamava com toda razão de “escola de vida”, começou a promover rebeliões entre os empregados para testar sua capacidade manipuladora. Todos diziam que ele fazia intriga; ele dizia que fazia política. Falava ao motorista que a cozinheira não gostava dele e dizia para a arrumadeira que o jardineiro não ia com o porteiro. Depois articulava tudo ao contrário e, frio como uma sombra, aguardava as satisfações e, como mediador de si mesmo, consertava tudo. Viu que, numa sociedade onde os laços sociais contavam mais do que os interesses, era tranquilo intrigar para desfazer o fuxico.
Um tio que era cabo eleitoral viu no menino uma indisfarçável disposição para a política.
É o seu caminho natural, decretou.
Mas como, tio, se o que faço é intriga?
Leia os jornais, disse solene o mentor. Hoje mesmo o senador inventou que o governador deve ser candidato a presidente; enquanto o prefeito fazia proposta de juntar os socialistas com o partido nacional dos patrões e lançou o nome do vice-presidente para governador! Todos, concluiu o tio, trabalham para o Brasil.
Mas e os que estão em julgamento por furto?
Ah! Isso depende do ponto de vista. De um lado são larápios; do outro são heróis porque roubaram para fazer um Brasil melhor. Ademais, como disse um deles, roubaram para o povo e não para eles. Se não tivessem roubado, outros teriam afanado (como você dizia) do mesmo jeito.
Mas Deus não disse que roubar é pecado?
Querido, retrucou o tio, Deus é brasileiro! Aqui tudo pode ser resolvido no papo, no acordo, na troca e no jeitinho.
Mas e se der cadeia?
Ora, se der cadeia o advogado — temos sumidades — solta. As leis são como a vida: têm vazios. O sujeito pega 15 anos mas os crimes prescrevem. O crime é visto como uma ofensa efêmera. Depois de algum tempo ele acaba porque ninguém pode ser julgado por toda a vida.
Mas as dívidas financeiras aumentam, tio.
É fato. As financeiras aumentam porque há o juro, mas as dívidas morais — esses crimes contra o patrimônio e as finanças públicas e até mesmo certos assassinatos — essas acabam.
Sofrem um processo de juro ao contrário, não é tio?
Isso mesmo. Porra, cara, você é mais inteligente do que eu suspeitava! No mundo desmoralizado dos banqueiros e do mercado, esse mecanismo de espoliação inventado pela burguesia e pelos rentistas, as dívidas aumentam brutal e imoralmente. Mas no nosso mundo social e político, quanto mais você rouba, mais é admirado e fica popular. O Brasil gosta de espertos e mandões com cara de pau. O teste aqui não é dizer a verdade, é saber mentir.
Veja bem, disse o tio muito sério, mentir é uma coisa, saber mentir é outra coisa. Entendeu?
Não, tio.
Eu explico: uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, compreendeu?
Mais ou menos.
Vamos por um outro caminho. Quando eles fazem é uma coisa; quando nós fazemos é outra coisa. Entendeu agora? Claro! É o que se chama de dois pesos e duas medidas. Usei o método para roubar as moedas de chocolate dos meus irmãos quando jogávamos bola de gude. Quando empatava eu ganhava! Quando havia dúvida, chamava a madrinha já sabendo que ela ia ficar do meu lado. E, de fato, ela, durona, dizia com o maior descaramento que eu era inocente. Um dia, quando brigamos com nossos primos, ela nos inocentou sem pestanejar. Afinal, vocês são nossos e nós somos de vocês, disse com voz embargada de orgulho cívico-familístico.
Mas como viver usando medidas diferentes para tudo?, perguntou o sobrinho.
É tranquilo. Você faz uma lei que é dura, mas que pode “pegar” ou não.
A lei?
A lei e o criminoso. Ambos, terminou o tio acendendo um charuto cubano. E depois, continuou, tem o sério problema das penas que ninguém entende direito, mas isso é uma outra história…
Fonte: O Globo, 14/11/2012
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