Lula emerge como herói do povo em livros didáticos de diversos autores –e já se editam os que narram o impeachment de Dilma como um “golpe das elites”. Sobram livros escolares que encontraram na Cuba castrista o paraíso terreno. Numa questão do Enem, aparece uma justificação “moral” para o terror jihadista. Textos pedagógicos pregam a censura à imprensa, na forma ritualizada do “controle social da mídia”. A linguagem sectária do racialismo perpassa inúmeros materiais escolares. Livros e textos destinados a jovens estudantes apresentam a família nuclear como ferramenta de opressão da mulher. Na versão original das bases curriculares do MEC, abolia-se o ensino da história “ocidental”. A marcha dos militantes políticos sobre a escola produziu, como contraponto, o movimento Escola Sem Partido. Contudo, as aparências (e os nomes) enganam: nesse caso, o antídoto é, ele também, um veneno.
O Escola Sem Partido patrocina um projeto de lei destinado a afixar nas escolas um cartaz com os “deveres do professor” que protegeria os estudantes da doutrinação ideológica e da propaganda partidária. Por si mesma, a ideia de uma intervenção estatal explícita, ameaçadora, contaminaria as relações entre alunos e professores no ambiente escolar. Dos seis itens do cartaz, quatro parecem óbvios a mentes não hipnotizadas pelo espírito doutrinário –mas, efetivamente, abrem espaço para infinitas interpretações subjetivas. Nos dois outros, revela-se um projeto tão nocivo quanto o dos militantes políticos das mil e uma causas.
O item quatro determina que, “ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas”, o professor exibirá, “com a mesma seriedade”, as “versões concorrentes”. Há, aí, sobretudo, uma incompreensão da natureza do processo de ensino e aprendizagem. Embora a polêmica sobre valores tenha seu lugar na sala de aula, a escola não existe para cotejar as contraditórias “respostas certas” a temas desse tipo. Substituir a “verdade” autoritária do doutrinador pelo “Fla-Flu ideológico” pode até funcionar na imprensa pluralista, mas nada resolve no campo da educação. De fato, a missão do professor é ensinar a formular as perguntas pertinentes –isto é, a inscrever os dilemas humanos nos contextos históricos e sociais apropriados.
Isso não é tudo. O que significa cotejar versões quando se trata de uma “questão sociocultural” como a teoria da evolução? Na esfera da ciência, nem tudo é polêmica. Será que o Escola Sem Partido almeja que se ensine, “com a mesma seriedade”, a “versão concorrente” que é o criacionismo?
O véu cai quando se examina o item cinco. De acordo com ele, “o professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. Como “os pais” formam um universo muito heterogêneo, a regra proporcionaria um “direito de veto” à família mais tradicionalista. Na prática (oh, surpresa!), o padre ou pastor locais exerceriam um poder censório absoluto sobre os professores, subordinando a escola aos mais rudimentares anacronismos e preconceitos.
Na democracia e na república laica, o compromisso essencial da escola não é com os chamados “valores da família”, mas com o direito dos alunos à cidadania. O alicerce de princípios da escola são os direitos humanos universais, inscritos na Declaração de 1948, que inspiram as constituições democráticas. A igualdade de direitos entre homens e mulheres, o respeito a diferentes orientações sexuais, o repúdio a preconceitos raciais e a proteção de minorias religiosas não devem ser descritos como “doutrinação ideológica” –e não são artigos negociáveis no balcão das “convicções dos pais”.
Previsivelmente, a fúria dos militantes políticos irriga as sementes de uma fúria simétrica. Escola Sem Partido, sim. Mas, ao mesmo tempo, Escola Sem Igreja.
Fonte: Folha de S.Paulo, 13/08/2016.
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