O entusiasmo pela proposta de desvinculação de receitas me fez lembrar um encontro que tive faz muitos anos. Caminhava pelo mercado de uma pequena cidade do interior, quando me deparei com o prefeito. Conhecido pela pouca sobriedade, saudou-me efusivamente. Buscando retribuir a simpatia, elogiei suas iniciativas na área da educação.
Sendo um município de população predominantemente rural, o prefeito havia criado um sistema de transporte escolar que buscava a garotada nos grotões e trazia para a escola. E se os pais engrossassem, preferindo manter as crianças na roça, ele ameaçava ir pessoalmente apanhá-las.
O prefeito respondeu ao meu elogio com grande desapontamento. “Que escolha tenho? Essa nova Constituição me obriga a gastar uma parte da receita com educação. E se não gastar, o Tribunal de Contas vem na minha jugular e o governador não repassa mais recurso para nada. Assim, não há o que fazer, senão colocar todo mundo na escola.”
Saí do mercado pensando onde ele colocaria as parcas verbas públicas que administrava se não fosse obrigado a investir um determinado quinhão em educação. Não tenho por que acreditar que a lógica desse alcaide muito se diferencie da racionalidade de políticos graúdos, como dizia meu avô, que habitam o planalto central ou os governos de Estado. Não há dúvida de que temos que controlar as despesas públicas. Não há dúvida de que ao longo dos anos todos os tipos de privilégios absolutamente ilegítimos foram sendo entrincheirados em nosso ordenamento jurídico. Não há dúvida, também, de que há enormes desperdícios, ineficiência e corrupção. Assim, há que se arrumar a casa urgentemente.
O problema é que a proposta que parece estar sendo desenhada pelo governo transferirá ao Congresso Nacional, em última instância, a liberdade de alocar, sem qualquer restrição, as receitas públicas, desde que o faça dentro do teto da inflação. Com isso, tende a colocar em risco o pouco de consistência que ainda resta a nossas políticas públicas de longo prazo. É entregar de bandeja o Orçamento para que ele seja canibalizado pelas forças vivas de nossos parlamentos.
Talvez fosse mais prudente que o modelo proposto pela equipe econômica deixasse de fora as áreas de educação e saúde. Nessas áreas, o melhor seria focar em mais gestão, métricas de desempenho, avaliação e incentivos para que se venha a alcançar uma melhora na qualidade dos serviços. Afinal, o desperdício e a mediocridade na prestação de serviços públicos podem ser tão imorais quanto a avara restrição dos gastos sociais, ainda mais num país com padrões indigentes de desigualdade, como o Brasil.
Ninguém de boa-fé desconhece a gravidade de nossa conjuntura. Os desafios são imensos. Há cortes duros a serem feitos. Por outro lado, há desonerações fiscais, juros subsidiados e outros confortos que devem ser atacados, sem com isso comprometer o futuro de milhões de jovens brasileiros que já se encontram num sistema educacional altamente deficitário e deficiente.
Essa medida, se aprovada, não apenas provocará fortes resistências de natureza jurídica, mas uma enorme reação dos jovens, que a partir de 2013 parecem ter retomado a sua disposição para lutar por seus direitos.
Fonte: Folha de S.Paulo, 28/05/2016.
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