O dia a dia da atividade pública é um exercício contínuo de escolhas. Mais ou menos urgentes, as decisões de política pública inserem escolhas que afetam, invariavelmente, um contingente relevante de vidas. A simbiose entre decisão e escolha é reflexo da escassez de recursos e da necessidade de se definir a alocação desses recursos priorizando algumas preferências em detrimento de outras tantas e diversas demandas.
No setor público, esse processo é mais complexo. Ao se delegar ao agente público o poder de fazer escolhas que devem (ou deveriam) gerar o melhor resultado para o maior número de pessoas, delega-se também a responsabilidade de zelar por todos – e não unicamente pelo seu bem-estar individual ou de um grupo específico de pessoas.
Essa deveria ser a base para o exercício da atividade pública, em particular daqueles que têm o poder de formular, aprovar e executar ações públicas. Cabe-lhes definir prioridades e fazer as escolhas compatíveis com elas. Mas se as prioridades são tortas, não há como as escolhas serem diferentes. O Brasil dos últimos anos é um triste exemplo disso. Ao longo das últimas décadas, boa parte das decisões de política pública teve como motivação o atendimento a pressões setoriais, pleitos de cunho corporativista e/ou interesses pouco republicanos.
Alguns exemplos disso são a concessão de isenções fiscais e os regimes especiais, que tornaram um sistema tributário já caótico e regressivo cada vez mais injusto; a formulação e aprovação de políticas públicas que vinculam recursos a atividades sem a devida avaliação de impacto; os processos burocráticos ou cartoriais injustificáveis e as concessões de privilégios e aumentos salariais a servidores públicos sem conexão com produtividade e descolados da realidade do País. À medida que avançamos nessa direção, o Brasil direcionou cada vez mais recursos para poucos, deixando a grande maioria silenciosa e vulnerável a reboque. Afinal, é sempre mais fácil atender a quem grita mais, a quem tem mais poder e a quem financia. São as escolhas fáceis e erradas que nos levaram à atual situação.
Mas nem tudo está perdido. Há exemplos de líderes públicos que, nesses tempos difíceis da vida nacional, onde as vísceras da desigualdade social se expõem, não se furtam a fazer as escolhas certas – e igualmente difíceis.
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Desigualdade – 2
No Rio Grande do Sul, após aprovar, ainda no ano passado, uma reforma da Previdência estadual e implementar uma reforma administrativa que já rende frutos, o governador Eduardo Leite avança agora com uma ousada reforma tributária. Não esperou a lentidão federal lá atrás, agora tampouco. Além da simplificação da tributação local, com uma bem-vinda redução do número de alíquotas, o projeto gaúcho propõe uma justa (e urgente) redistribuição da carga tributária. Há ainda um conjunto de ações que visam a estimular a atividade econômica com a redução da alíquota base de tributação e do ônus fiscal para a população de baixa renda, com a devolução do ICMS para famílias com renda de até três salários mínimos. A contrapartida foi a revisão dos benefícios fiscais e o realinhamento de alíquotas. A escolha aqui é pela progressividade da tributação e pela redistribuição de recursos, em prol, portanto, da justiça social.
Em outro exemplo a destacar, o governo de São Paulo se antecipa ao caos fiscal que se abaterá sobre os entes subnacionais e age para conter o desequilíbrio orçamentário que – bem sabemos – tem como consequência a deterioração dos serviços públicos básicos e a corrosão da capacidade de investimento público. Com o fim do socorro do governo federal e o retorno da obrigatoriedade do pagamento da dívida com a União, teremos a realidade fiscal dos Estados de volta. Realidade que já era ruim, mas piorou muito.
O governador João Doria escolheu não esperar essa realidade lhe bater à porta e já busca a correção de rota com medidas de ajuste e um plano de recuperação econômica e social que visam a garantir o protagonismo de São Paulo nos investimentos em infraestrutura e no equilíbrio financeiro e orçamentário. Um conjunto de medidas que abrangem desde o enxugamento da máquina estadual até a redução dos incentivos fiscais e o realinhamento de alíquotas de impostos foi enviado à Assembleia Legislativa. Em paralelo, uma reforma administrativa, ações de desburocratização e um programa robusto de concessões já tomam forma.
Ou seja, há, sim, lideranças que tomam a frente do processo decisório e fazem as escolhas difíceis e certas. São essas escolhas – e não o atendimento de pleitos setoriais e corporativistas – que permitem que a população que mais precisa do Estado e do governo possa estar representada nas ações públicas. Fácil não é, popular tampouco. Mas é justo e correto, pois somente com política pública de boa qualidade, focalizada e bem executada se promove desenvolvimento econômico e social sustentável. O resto é clientelismo e atraso. Afinal, são as prioridades certas que motivam as escolhas certas.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 11/8/2020