Nos últimos dias a mídia noticiou que a Caixa Econômica Federal (CEF) tem sido usada para financiar despesas correntes de programas sociais instituídos pelo Governo Federal, prática também conhecida como ‘pedalada fiscal’. Documentos divulgados pelo Contas Abertas e pelo jornalista Cláudio Dantas, da Revista IstoÉ, comprovam que, desde julho, a CEF reclama dos repasses insuficientes do Governo Federal para atender programas sociais como o Seguro Desemprego e o Bolsa Família.
Para Lucieni Pereira, presidente da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC), se de um lado a ‘pedalada fiscal’ mantém os benefícios sociais em dia, do outro, o governo adia a queda substancial do ‘colchão financeiro’ do Tesouro Nacional, sinalizando para o mercado financeiro um suposto ‘cumprimento’ das metas fiscais.
De acordo com Lucieni, tais manobras, afrontam o princípio da gestão fiscal responsável, alicerçado na ação planejada e transparente em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas.
Confira entrevista completa.
Contas Abertas (CA) – O que há de errado na ‘pedalada fiscal’?
Lucieni Pereira – Na Administração Pública, essa prática é vedada pelo artigo 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que proíbe que os bancos públicos financiem os entes controladores. Qualquer pessoa, física ou jurídica, que não usa seu salário/receita para pagar suas despesas correntes, e tem essa conta paga pelo banco, contrai uma obrigação financeira ou dívida que, no plano econômico-financeiro, configura o conceito clássico de operação de crédito. Na linguagem popular, é o mesmo que ‘entrar no limite do cheque especial’ para evitar o calote, dívida, portanto.
CA – Qual o objetivo da proibição?
Lucieni – A razão da proibição é simples: evitar o uso indevido de instituições financeiras para alavancagem fiscal em ano eleitoral, prática comum que marcou a gestão pública nas décadas de oitenta e noventa, e que obrigou a União a refinanciar dívidas de Estados e Municípios, que hoje beiram a casa de R$ 500 bilhões.
CA – Em que pontos a proibição pode ajudar?
Lucieni – A importância dessa proibição é indiscutível, afinal não há ‘almoço grátis’. Para evitar o calote dos benefícios sociais, a instituição financeira federal paga a conta que é do Governo e depois apresenta a fatura, com ou ‘sem juros’ explícitos. Esse descompasso entre o pagamento da despesa e o dispêndio efetivo dos recursos do Tesouro Nacional configura o tipo clássico de operação de crédito. Traduzindo para linguagem popular: é entrar no limite do ‘especial’, o que é proibido, como já ressaltei.
CA – O que significa entrar “no limite do especial” nesse caso?
Lucieni – “Entrar no limite do especial” significa empréstimo para cobrir insuficiência de caixa, é assim que ocorre com todos, pessoas físicas e jurídicas, inclusive o Governo. Esse tipo de operação é denominada antecipação de receita (ARO) na Administração Pública, proibida pela Lei de Responsabilidade Fiscal no último ano de mandato do Presidente da República, Governador e Prefeitos. Essa é uma previsão explícita no artigo 38, inciso IV, alínea ‘b’.
CA – Por que essa situação é agravada no ano eleitoral?
Lucieni – A preocupação com desajustes fiscais em ano eleitoral é marca presente em várias passagens da Lei de Responsabilidade Fiscal. A razão desse rigor fiscal não é outra senão impedir que, para garantir a perpetuação no poder – do próprio governante ou do sucessor que se queira patrocinar indiretamente -, o Chefe do Poder Executivo desequilibre as contas públicas e deixe uma herança maldita para as gerações futuras.
CA – Há outras práticas proibidas no ano eleitoral?
Lucieni – Além da realização de ARO, a Lei de Responsabilidade Fiscal proíbe a contratação de pessoal nos 180 dias do final do mandato e que o governante contraia obrigação financeira – de abril a dezembro do último ano do mandato (para inauguração de obras públicas em especial) – sem deixar disponibilidade de caixa suficiente para o pagamento de restos a pagar no exercício seguinte. Esses são casos recorrentes de uso indevido da máquina pública que tem o potencial de alavancagem eleitoral, com elevado risco de desequilibrar o pleito.
CA – Algumas notícias informam que existe cláusula contratual relativa à faculdade de a Caixa realizar os pagamentos dos benefícios sociais com recursos próprios. Qual a sua opinião sobre esses contratos?
Lucieni – Não analisei os termos dos contratos celebrados entre o Governo Federal e a Caixa Econômica. Segundo foi divulgado pela mídia, o diretor jurídico da Caixa teria enviado ofício à Advocacia-Geral da União por meio do qual solicita “que sejam regularizados os repasses do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome ‘necessários e suficientes’ ao pagamento do benefício do Bolsa Família, bem como ‘o devido ressarcimento dos custos já suportados diretamente pela Caixa’”. Se isso procede, na minha avaliação pessoal, os contratos não observam os conceitos e restrições previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal e precisam ser corrigidos urgentemente. Os contratos, termos e acordos devem observar a legislação vigente e essa é uma questão do interesse dos bancos, pois o artigo 33 da LRF prevê que a “instituição financeira que contratar operação de crédito com ente da Federação deverá exigir comprovação de que a operação atende às condições e limites estabelecidos”. Determina, ainda, que a operação realizada com infração à Lei será nula, cancelada e ainda proíbe o pagamento de juros e demais encargos. Esse é um comando para os bancos, que não podem alegar desconhecimento dessas restrições legais. A LRF não pode ser uma lei aplicada apenas a Estados e Municípios, podendo a União fazer o que quiser no campo das finanças públicas. A lei é para todos.
CA – Como fica a transparência?
Lucieni – Todos esses subterfúgios – típico do ‘jeitinho’ brasileiro – afrontam o princípio da gestão fiscal responsável, alicerçado na ação planejada e transparente em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições referentes à renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em restos a pagar.
CA – Quais as consequências de não seguir o previsto na Lei Fiscal?
Lucieni – Ao esquecer os pilares da gestão fiscal sustentável e responsável, a estrutura das finanças públicas no Brasil é corroída pela ‘criatividade contábil e financeira’ que, nos últimos tempos, tem sido a marca da condução da política fiscal na esfera federal, contrariando toda a lógica e a ordem natural das finanças públicas.
Fonte:Contas Abertas.
No Comment! Be the first one.