Com a abertura da temporada de caça ao voto, o substantivo “transparência” vai virando objeto de culto e de comício. É reverenciado em toda parte, a todo o volume, por todos os candidatos; estamos diante de uma divindade suprapartidária e de seus devotos barulhentos. Mas há um detalhe intrigante: ninguém parece saber muito bem o que quer dizer essa palavra. O culto da transparência, entre nós, é deveras opaco. Ou capcioso.
Ninguém mais se lembra, mas o vocábulo ganhou notoriedade nos anos 1980, quando, na então União Soviética, Mikhail Gorbachev adotou seu programa de reformas em torno de dois eixos: a perestroika (reestruturação) e a glasnost (transparência). O projeto de abrir janelas de vidro límpido nas paredes de chumbo do Estado stalinista causou um cataclismo. O Estado não aguentou. Gorbachev levou seu propósito tão longe que acabou derretendo as paredes, os burocratas e a própria URSS. Naquele tempo, transparência era isto: uma bandeira mortal para um organismo que não resistisse à luz solar.
E o que foi feito hoje desse substantivo? Ouvindo a gritaria dos caçadores de votos, a gente fica com a impressão de que ele se reduziu a um sinônimo empolado de honestidade. Nada mais que isso. Um sinônimo mais “chique” – ou mais “sofisticado”, como preferem dizer. Como se honestidade, esse termo hoje visto como “simplório”, fosse coisa “de pobre”: gente fina não é honesta, é transparente.
Poucos exigem transparência do Estado, muitos usam o substantivo como purpurina cívica para se maquiar na TV. A palavra acabou se diluindo num enfeite inofensivo. Virou categoria de melodrama, repertório de cena de novela, como quando a mocinha olha candidamente nos olhos do galã e diz: “Sabe, meu bem, eu sou uma pessoa muito transparente. Não posso evitar, Deus me fez assim.”
Os candidatos e candidatas olham-nos mais ou menos do mesmo jeito para recitar mais ou menos a mesma jura. Ao se declararem “transparentes”, assumem o ar indefeso de quem confessa uma debilidade, mas uma debilidade especialíssima, muito vantajosa. Eles se confessam inábeis para ocultar as próprias emoções, como se estivessem condenados a dizer a verdade, sempre a verdade. Desprovidos de malícia pela própria natureza, esperam maliciosamente merecer a confiança pública. A confiança que pleiteiam é uma forma de piedade.
Eis aí um embuste, ou melhor, eis aí o grande embuste da temporada. Quem se diz assim tão transparente, das duas, uma: ou não parou para pensar na insustentabilidade lógica do que postula ou está querendo pregar-nos uma peça.
Seres humanos não são como o vácuo do espaço sideral. A luz não os atravessa como a uma lâmina cristalina. Humanos são sólidos e opacos, tropeçam no fio do abajur, derrubam o copo na mesa, fazem sombra uns aos outros, cobrem-se de roupas e de linguagem – ou não existiram. Pedir a um sujeito que seja transparente a esse ponto equivale a pedir que ele desapareça. Os segredos íntimos, conscientes ou não, são indispensáveis para que a pessoa se estruture e possa almejar a liberdade. Uma sociedade em que ninguém tivesse segredos seria insuportável, além de impossível.
Por isso, o mito da pessoa (ou do candidato) transparente, mais que sentimentaloide, é perverso. Procura transferir para gente de carne e osso um atributo que deve ser do Estado – a transparência, como atributo do Estado, evita que a opacidade humana, quando instalada dentro dele, possa converter-se num monstro. Numa pessoa a mesma transparência não faz sentido. A não ser como imposição autoritária ou como fraude que quem promete imprimir à máquina pública suas alegadas virtudes de caráter (como se ela, a máquina pública, fosse regida pelos humores do governante, e não por leis impessoais).
Aqui chegamos ao núcleo da incompreensão que cerca esse tema. Na esfera individual, a presunção da transparência absoluta pode mascarar a má intenção dos embusteiros ou massacrar a boa-fé dos inocentes. Se não houver um espaço indevassável para resguardar a personalidade de cada um, não haverá liberdade. Não por acaso, o voto, nada menos que o voto, é secreto e inviolável. Esconder o próprio voto é direito fundamental do cidadão. Não por acaso, também, os Estados totalitários têm obsessão por vigiar atos, declarações, desejos e até o pensamento dos súditos. São Estados opacos que impõem a transparência compulsória ao cidadão.
Na democracia o princípio é outro. O administrador público tem o dever de assegurar a todos o acesso às informações sob guarda do Estado. Cabe a ele zelar para que essas informações sejam claras, simples, diretas e confiáveis. Esse dever do Estado – e do governo – deveria repelir qualquer tentativa de proselitismo com verba pública. A chamada propaganda oficial, ou a tentativa de convencer a sociedade das teses governistas, agride o dever de transparência do Estado. A informação de interesse público precisa estar acessível, desinteressadamente acessível, para que cada um forme a sua opinião sobre o que quer que seja. Isso porque o regime democrático respeita a esfera íntima do indivíduo, que inclui a liberdade de crença e de pensamento.
No nosso tempo, contudo, muitos dos que se proclamam transparentes morrem de ciúmes do Estado. Querem que o povo fique longe dele. Querem se beneficiar das opacidades na máquina pública. A esses valeria solicitar mais sinceridade em relação a assuntos públicos. Por exemplo: por que declaram armazenar dinheiro vivo dentro de casa? Apenas para terem um álibi caso um assessor seja pego com maços de cédulas numa valise ou numa cueca? Talvez eles nos pudessem brindar com mais sinceridade. Poderiam cultuar também a honestidade, essa palavra fora de moda. Mas, por ora, estão muito ocupados em ser transparentes até não poder mais.
Fonte: Jornal “O Estado de S.Paulo” – 29/07/10
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