Apresentada em setembro do ano passado pelo governo, a reforma administrativa (PEC 32/2020), projeto que reformula o serviço público no Brasil, tenta avançar no Congresso Nacional, onde a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) deve ser debatida e eventualmente alterada antes de ser aprovada e passar a valer.
Fim da estabilidade garantida e etapas mais exigentes de promoções são algumas das regras atuais do funcionalismo público que a PEC da Nova Administração Pública, como foi formalmente chamada pelo governo, ou “reforma do RH do Estado”, como foi apelidada, quer mudar.
O objetivo, de acordo com o governo e defensores da reformulação, é atacar a diferença salarial grande que há entre os trabalhadores públicos e os demais, criar estímulos para melhorar os serviços e, principalmente, cortar gastos, já que a folha de pagamento é uma dos principais custos do Orçamento federal em um cenário em que as despesas, limitadas pelo teto de gastos, não têm mais espaço para acomodar quase nada.
Do outro lado, servidores e partidos de oposição criticam as brechas para maior intervenção dos governos nos serviços e também a fragilização de um grupo que vai de professores a enfermeiros, médicos e pesquisadores.
O salário médio dos funcionários públicos no país é 90% maior que a média do que ganham os empregados da iniciativa privada, formais ou informais, de acordo com os dados mensais de mercado de trabalho do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Só novos ingressantes e juízes de fora
As novas regras, uma vez aprovadas, abrangem funcionários públicos de qualquer esfera – federais, estaduais e municipais –, mas só aqueles que ingressarem depois da aprovação da reforma. Os que já estão dentro têm seus benefícios mantidos como estão.
Militares, magistrados (como juízes) e parlamentares, justamente onde estão os salários mais altos, não foram inclusos e não sofrerão nenhuma alteração, a não ser que o Congresso os inclua no texto durante a tramitação ou outras propostas de lei específicas para eles sejam feitas em paralelo.
Parte dos benefícios típicos desses grupos está sendo atacada em outra frente pelo “PL dos supersalários”, projeto de lei aprovado recentemente na Câmara que limita os benefícios recebidos pelos funcionários do alto escalão que recebem salários acima do teto constitucional do funcionalismo público.
Aprovação ainda este ano
A PEC da reforma administrativa chegou no começo de junho à comissão especial da Câmara dos Deputados que tem a função de apreciá-la, e está agora na fase de debates. Já recebeu as propostas de emendas dos parlamentares e o relator, o deputado Arthur Oliveira Maia (DEM-BA), promete para agosto a nova versão do texto, já com as alterações acatadas a partir das sugestões dos colegas.
A promessa do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é que o texto definitivo seja aprovada até o fim deste ano, já considerada a segunda rodada de análise e votação, porque tem que passar no Senado, depois de aprovado na Câmara.
Mercado à espera
Como mexe em um dos principais gastos do governo – a folha de pagamentos –, é também uma das reformas prometidas mais aguardadas por economistas e investidores.
Muitos especialistas e associações empresariais defendiam, inclusive, que a reforma administrativa, que reduz os gastos, deveria ter vindo antes da reforma tributária, que mexe com a arrecadação e está também correndo em paralelo no Congresso.
“A partir de 2023, o teto de gastos só poderá ser cumprido se a reforma administrativa já estiver aprovada; sem ela fica inviável”, disse o economista-chefe da RPS Capital, Gabriel Leal de Barros, especializado em contas públicas.
“E ela já começaria a fazer efeitos em 2023. Cerca de 40% dos atuais servidores se aposentam nos próximos 10 anos. Fazer novos concursos será inevitável e, com a reforma, já seriam feitos pelas novas regras.”
O CNN Business conversou com Leal e também com o advogado Luciano Henrique Oliveira, consultor legislativo do Senado em direito constitucional e sócio da LHO Advogados, para explicar as principais mudanças em jogo na atual proposta da reforma administrativa.
Veja a seguir os principais pontos, e também os mais polêmicos:
Novos tipos de servidores
Hoje, os servidores públicos se dividem em dois grandes grupos: os concursados (que são aqueles que entram via concurso e têm a estabilidade do emprego garantida) e os comissionados (que são os cargos de confiança, indicados e temporários).
Há ainda os chamados celetistas, ligados geralmente às estatais. Estes, no geral, também devem prestar concurso, mas são contratados pelas regras da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), como no setor privado, e, a princípio, não têm estabilidade – embora seja comum conseguirem este direito nas convenções sindicais ou na Justiça.
A proposta da reforma extingue as duas primeiras categorias e cria cinco novas formas possíveis de contratação. Os funcionários CLT são mantidos como estão. “Na prática, o grupo de concursados, que hoje é uma categoria única, é divida em duas [cargos típicos do Estado e não típicos de Estado], e os comissionados mudam de nome [para ‘liderança e assessoramento’]”, explica o consultor parlamentar Luciano Henrique Oliveira.
Os cinco novos tipos de vínculo propostos são:
1. Vínculo de experiência:
É o equivalente ao atual estágio probatório, período dos três primeiros anos da carreira em que o profissional aprovado em concurso é avaliado antes de sua efetivação. Com a reforma, esta fase de transição passará a ser de dois anos para os servidores de cargos típicos de Estado e de um ano para os demais (com vínculo por prazo indeterminados).
2. Vínculo por prazo indeterminado (cargos não típicos de Estado):
É a categoria que será o equivalente à grande maioria dos concursados atualmente (à exceção das carreiras que forem consideradas típicas do Estado). Eles continuam sendo admitidos via concurso público, a principal diferença é que estes não terão mais direito à estabilidade, ou seja, poderão ser demitidos a qualquer momento, com ou sem justa causa, como os demais empregados.
3. Cargos típicos de Estado
Será esta a parte dos servidores concursados que continuará a ter direito à estabilidade. A ideia é deixar nesta categoria as carreiras sensíveis e que podem sofrer pressão política, como fiscais de órgãos reguladores, por exemplo. Esta lista, porém, ficou em aberto no projeto da reforma e deverá ser definida depois por lei complementar.
4. Cargo de liderança e assessoramento
É o equivalente aos atuais cargos comissionados e de confiança, como assessores, secretários e ministros, por exemplo. Estes são profissionais indicados, dispensados de concurso, sem estabilidade e tipicamente temporários.
5. Vínculo por prazo determinado
É um novo tipo de vínculo criado, com processo de seleção simplificado, destinado a funções extraordinárias e temporárias, como em situações de emergência e calamidade ou de paralisação de atividades essenciais. Projetos temporários e atividades sazonais também poderão recorrer a esse formato.
Estabilidade para poucos
A estabilidade, hoje um direito de qualquer servidor concursado, passará a ser restrita apenas às carreiras que vierem a ser definidas como típicas de Estado. “A grande maioria dos servidores hoje seria classificada pelo vínculo de prazo indeterminado e perderia a estabilidade”, disse Oliveira.
Além disso, mesmo para os que continuarem com elas, as brechas para demissão devem ficar mais fáceis.
“Hoje, os servidores só podem perder o cargo por justa causa, por alguma falta funcional ou por uma decisão judicial, e só se o processo tiver transitado em julgado, ou seja, só se estiver definitivamente encerrado”, diz Oliveira. “Pela reforma, o servidor poderá perder o cargo por decisão proferida já na segunda instância.”
Fim da progressão automática e corte de benefícios
A proposta veta benefícios hoje permitidos ou para os quais não há proibição expressa. É o caso, por exemplo, de férias superiores a 30 dias ou de promoções automáticas, apenas por tempo de carreira. Também fica proibida a redução de jornada sem redução proporcional do salário – exceto para as carreiras de Estado.
“Para a pessoa ser promovida, terá que ser necessário ter uma avaliação do desempenho e da produtividade”, diz Oliveira. “Mas a maioria desses benefícios já não existe mais na esfera federal. Só juízes têm férias superiores a 30 dias. É nas esferas dos estados e municípios que isso pode ser melhor disciplinado.”
Os benefícios vetados pela reforma são:
– férias em período superior a 30 dias
– adicionais referentes a tempo de serviço, independentemente da denominação adotada
– aumento de remuneração ou de parcelas indenizatórias com efeitos retroativos
– licença-prêmio, licença-assiduidade ou outra licença decorrente de tempo de serviço, independentemente da denominação adotada. A única ressalva é a licença para fins de capacitação
– redução de jornada sem a correspondente redução de remuneração (para as carreiras típicas do Estado, não será permitida a redução de jornada e de remuneração)
– adicional ou indenização por substituição, ressalvada a efetiva substituição de cargo em comissão, função de confiança e cargo de liderança e assessoramento
– progressão ou promoção baseada exclusivamente em tempo de serviço
– parcelas indenizatórias sem previsão de requisitos e valores em lei, exceto para empregados de empresas estatais
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Possibilidade de ter mais de um emprego
A legislação atual proíbe os servidores públicos de acumularem mais de um cargo, o que só é permitido quando a segunda atividade é como professor ou como profissional de saúde em outro estabelecimento.
A reforma manterá essa restrição para os cargos típicos de Estado, mas permitirá que os demais possam acumular outros tipos de cargos ou empregos públicos. A única restrição é que o segundo trabalho não afete os horários do primeiro.
Fonte: “CNN”, 23/07/2021
Foto: Reprodução