Há um certo senso comum popular segundo o qual a segurança pública é uma das principais atribuições do Estado. Não se trata de nada corriqueiro, pois estamos falando da conservação da vida, da integridade do corpo, da preservação dos bens e da defesa da família. Todas as pesquisas de opinião mostram que esta é uma das principais preocupações dos brasileiros, que se veem como desatendidos no que deveria ser o eixo mesmo de atuação do Estado. Qual é o destino de nossos impostos, se o Estado nem isto pode assegurar?
Há, também, certo senso comum filosófico que fundamenta essa percepção popular. Caberia ao Estado, dizia Hobbes, assegurar a integridade física e a conservação dos bens de seus cidadãos, via exercício do monopólio da violência. Isto significa que os cidadãos teriam transferido ao Estado o uso da violência, de tal maneira que a ordem pública possa se estabelecer.
O mesmo senso filosófico, desta feita seguindo Kant, estabelece que a lei reja os conflitos em estados republicanos, de modo que sentenças judiciais devam ser aplicadas, pois se isto não ocorre é como se a própria lei não existisse. Uma lei ineficaz não pode ser propriamente denominada de lei.
O Brasil está vivendo uma série de eventos que têm se caracterizado pela desordem pública, pelo emprego da violência por parte de grupos organizados, chamados, genericamente, de “movimentos sociais”, pela não observância da lei e pela imposição, mediante a força, de posições minoritárias. Os cidadãos observam, estarrecidos, como esses diferentes grupos agem, sem a menor preocupação com os direitos e as liberdades dos demais, como se a seara pública pudesse ser, simplesmente, invadida por atos violentos.
As greves dos rodoviários no Rio de Janeiro, em São Paulo e, anteriormente, em Porto Alegre, são exemplos gritantes da inoperância do Estado. Convém aqui observar que a segurança pública se constitui em uma atribuição dos estados, não sendo um papel a ser cumprido pela União, senão subsidiariamente em momentos de crise ou grave tensão social. Logo, estamos falando da falência do Estado no domínio dos estados, onde distintos partidos políticos exercem o poder.
Uma certa cronologia é aqui importante. A primeira greve propriamente selvagem dos rodoviários ocorreu em Porto Alegre, onde os grevistas impediram, graças a atos violentos, a circulação de ônibus em um período que se estendeu, ao todo, por mais de uma semana. O caos urbano foi estabelecido. Grupos minoritários, em boa parte vinculados à extrema esquerda, impuseram a sua vontade pelo uso da força.
O governador petista, Tarso Genro, tomou a decisão de a Polícia Militar não intervir, para evitar, segundo ele, o confronto com os grevistas, podendo resultar em mortes ou acidentes. Ou seja, o confronto só se estabeleceria com a intervenção da polícia, quando, na verdade, ele foi suscitado por atos violentos dos próprios grevistas. O prefeito, do PDT, José Fortunatti, preocupado com os cidadãos, pediu a intervenção da polícia, no que não foi tampouco atendido pelo governador.
Os grevistas se sentiram ainda com mais poder e puderam infernizar a cidade, contando com a completa impunidade. Uma polícia que não age para coibir atos violentos, evidentemente, não cumpre com sua função. Torna-se uma mera observadora da violência, como se esta não lhe dissesse respeito.
Note-se ainda que a Justiça do Trabalho, normalmente simpática às reivindicações dos trabalhadores, declarou a greve abusiva, estabeleceu punições, que não produziram o menor efeito, pois os grevistas também pensaram que a lei não precisa ser observada. O know-how tinha sido adquirido.
A greve dos rodoviários de São Paulo contou com este know-how. Rodoviários gaúchos transmitiram esse conhecimento aos grevistas paulistas, participando de sua logística. Ou seja, foram a São Paulo para ajudar na organização dos atos violentos. O script foi semelhante, com algumas inovações no que diz respeito à ampliação do uso sistemático da violência. Note-se que não há nenhuma “espontaneidade” aqui, mas sim uma organização digamos “refinada” do arbítrio.
Os grevistas, na mais completa ilegalidade, fizeram uma greve selvagem, sem nenhum aviso prévio. Como a ilegalidade já não é mais coibida, pode ela servir de exemplo para as ações. Usuários foram, no meio de seus percursos, retirados dos ônibus. Os veículos foram atravessados no meio das ruas e avenidas, com o objeto explícito de causar o maior dano aos outros cidadãos. A liberdade de ir e vir foi simplesmente anulada. Houve mesmo o requinte de as chaves dos ônibus serem jogadas fora, para impedir um reposicionamento destes veículos. O objetivo foi o estabelecimento do caos.
A prática amplamente utilizada no Rio de Janeiro de queima de ônibus foi também empregada como se a depredação do patrimônio das empresas fosse algo justificável, como se a sua segurança pudesse ser negligenciada. São as chamas da violência.
Note-se que no caso paulista um script semelhante se desenhou no que diz respeito ao papel dos governantes, embora as posições partidárias não fossem as mesmas. O governo tucano de Geraldo Alckmin optou por sua polícia ser igualmente mera observadora dos atos violentos, não intervindo para coibi-los. É como se a coerção de atos violentos não dissesse respeito ao governo estadual pela greve ter se estabelecido no nível municipal. O absurdo é evidente, pois a segurança concerne à função mesma da esfera estadual.
No caso, foi a administração municipal, a do prefeito petista, Fernando Haddad, que pediu, com razão, a intervenção da força estadual, pois atos violentos devem ser reprimidos seja lá onde ocorram. É incompreensível que o crime corra solto, que a violência se generalize, enquanto a polícia torna-se mera espectadora. Observe-se, por último, que a greve foi considerada abusiva pela Justiça do Trabalho e isto tampouco teve um efeito imediato, pois a ilegalidade tornou-se a tônica dessas manifestações.
Cabe, então, a pergunta: há Estado?
Fonte: O Globo, 2/6/2014
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