Algumas obviedades costumam escapar do senso comum brasileiro, sobretudo quando enviesadas ideologicamente. A segurança, tão cara a qualquer pessoa, é vista – melhor dizendo, encoberta – do prisma de uma oposição entre direita e esquerda, como se se tratasse de assunto da primeira. Imaginem uma pessoa acossada por um criminoso diante de uma opção ideológica quando se debate entre a vida e a morte. Não faz nenhum sentido.
Convém, preliminarmente, relembrar o óbvio. É função primordial do Estado assegurar a integridade física dos cidadãos e de sua família, assim como de seus bens. Se renunciam à autodefesa no uso indiscriminado da violência, é para que dela sejam resguardados. Não deveriam viver sob o medo, como hoje é na maioria das cidades, onde as pessoas nem mais podem caminhar livremente pela rua. Sair de casa, quando não nela permanecer, sem nenhuma arma tornou-se, para o cidadão indefeso, atividade de risco. Uma situação desse tipo é inaceitável, mas é a expressão da anormalidade atual.
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O teatro da imoralidade
E quando falamos de Estado devemos ter presente que não se trata apenas da União, mas do conjunto do aparelho estatal, com seus Estados e municípios, assim como os diferentes ramos do Executivo, do Judiciário, do Ministério Público e do Legislativo. O País não pode mais viver esquartejado em diferentes competências isoladas, como se cada uma constituísse um território à parte, desvinculado dos demais. Observa-se nas últimas décadas uma transferência de responsabilidades, abandonando o cidadão à própria sorte.
O Rio de Janeiro é um caso emblemático, embora não seja o único, nem talvez o mais importante do ponto de vista das estatísticas. O que o caracteriza é ser a antiga capital do País, ainda funcionando como uma caixa de ressonância nacional. Mais particularmente, a atividade criminosa lá não se fez apenas fora do aparelho estatal, mas terminou por impregná-lo diretamente. Políticos estaduais estão presos, seu maior símbolo é o ex-governador que tornou sistemática a corrupção, sem sequer se preocupar com as aparências.
Territórios completos foram deixados à criminalidade e ao narcotráfico, atestando a existência de uma espécie de sem-Estado dentro do Estado, enquanto este apenas mantinha a aparência de normalidade institucional. Em tal contexto surgiu uma completa anomalia, embora, ressalte-se, seja ela fruto da soberania popular, isto é, os governantes corruptos foram eleitos em processo de livre escolha. Isso significa que cariocas e fluminenses são responsáveis pela situação que atualmente vivem.
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Nesse sentido, deveriam arcar, com impostos próprios, com os gastos da uma intervenção federal, pois se pode considerar inapropriado que contribuintes de outros Estados paguem os custos de uma escolha eleitoral feita à sua revelia. O caixa nacional não é do governo federal, é abastecido com impostos e contribuições pagos por todos os brasileiros.
O governo Temer, ao decidir pela intervenção, chamou a si uma responsabilidade que, em termos de distribuição de competências federativas, não era dele, mas dos Estados. Pode-se discutir a oportunidade da intervenção, pois deixou para trás uma reforma vital para o País como é a da Previdência, dando ensejo à percepção de que haveria propósito eleitoral nessa iniciativa. O fundamental, no entanto, reside em que a situação do Rio foi percebida como crucial, na medida em que a violência apareceu midiaticamente como insuportável, apesar de vicejar há muito tempo. O presidente, responsavelmente, visou o restabelecimento da autoridade, pilar de sustentação do Estado. Outros presidentes se omitiram.
As Forças Armadas foram chamadas a cumprir essa missão, com o protagonismo sendo atribuído ao Exército. Nada mais natural, considerando o fato de as polícias do Rio não estarem mais cumprindo essa função. O Estado estava – e está – se esfacelando. Os militares gozam de alto prestígio entre a população e são reconhecidos por sua moralidade, honestidade e dedicação à Pátria. Em situações de emergência, soluções emergenciais.
O viés ideológico esquerdizante, porém, começou novamente a funcionar. Fala-se de intervenção militar, quando ela é federal, seguindo os preceitos constitucionais. Fala-se – incrivelmente, diria – da necessidade de acompanhamento das atividades das Forças Armadas pela Defensoria Pública, pelo Ministério Público, por diferentes comissões, e assim por diante. Disparate total. É como se potenciais criminosos uniformizados estivessem à solta, sob a máscara da captura de criminosos; como se os militares fossem o problema, e não uma parte essencial da solução. O que preferem? A continuidade da anarquia e a perpetuação da violência sob a demagogia de defesa dos favelados, quando estes são, na verdade, reféns do crime?
Alguns casos são emblemáticos. Foi amplamente divulgada uma série de fotos retratando soldados averiguando a identidade de moradores dos morros. Toda uma celeuma se criou, como se estivessem fichando inocentes tidos por criminosos. Tratou-se de mera identificação digitalizada, online, para averiguar a existência ou não de problemas com essas pessoas.
Nada muito diferente da identificação em prédios públicos ou empresas privadas. Em qualquer repartição do Executivo, do Legislativo, do Judiciário, do Ministério Púbico há processos de identificação, com documentos e fotos. É corriqueiro e não se torna notícia. Ou deveríamos indignar-nos com tais procedimentos?
É inaceitável que se pretenda desqualificar o restabelecimento da autoridade estatal, atribuindo-lhe violações dos “direitos humanos” e da “democracia”. São estes que estão sendo diariamente pisoteados pelos crimes dos traficantes, dos contrabandistas e de uma parte da elite política.
Fonte: “Estadão”, 05/03/2018