Com 92 óbitos entre janeiro e julho, índice é quatro vezes maior que o de São Paulo e supera todos os estados do Nordeste somados
Passavam poucas horas do réveillon quando o corpo do policial militar André William Barbosa de Oliveira, de 32 anos, foi encontrado no porta-malas de seu carro, em Guadalupe. Um dia depois, três colegas de farda de André foram assassinados, e mais três seriam mortos antes do fim da primeira semana de 2017. Era o prenúncio de um ano que deixaria a corporação perplexa. Com 92 baixas de janeiro a julho, a Polícia Militar do Rio registrava mais de um terço dos policiais mortos em todo o Brasil. Mais precisamente, segundo um levantamento do GLOBO junto às secretarias estaduais de Segurança, eram 38,8% dos 240 PMs assassinados no país nesse período. Histórias de vida interrompidas que puseram o estado no topo de um ranking sombrio, cujo segundo colocado, São Paulo, teve quatro vezes menos perdas, com 22 mortes. Enquanto a lista fluminense não para de contabilizar nomes, com mais cinco vítimas só nesta primeira metade de agosto, totalizando 97 casos, sendo 21 deles em serviço.
ESTATÍSTICAS REVELAM ALTA LETALIDADE
A crescente violência contra os agentes de segurança este ano produziu um cortejo de policiais em cemitérios, onde amigos e familiares de PMs choraram inconformados as sucessivas despedidas. Numa comparação com o restante país, outros números comprovam a gravidade da situação. Em São Paulo, a quantidade de mortes foi bem menor apesar de o efetivo paulista ser quase o dobro do fluminense: 85.247 PMs na ativa, na reserva ou reformados, contra os 45.463 do Rio. Ou mais. Aqui, foram mais policiais mortos do que em todos os 13 estados do Nordeste e Centro-Oeste juntos, que totalizaram 83 baixas.
Isso num universo no qual, dos 10 estados em que mais se matam agentes de segurança pública, cinco ficam no Nordeste: Ceará (16 mortes, em terceiro lugar), Bahia (15, em quarto), Rio Grande do Norte (14, em sexto), Pernambuco (10, em sétimo) e Piauí (seis, em décimo). Em relação à Região Sul, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina tiveram o mesmo número de mortos de janeiro a julho (11) que o Rio registrou apenas nos 15 primeiros dias de 2017.
Estados com altas taxas de homicídios entre a população em geral, como o Sergipe, tiveram um único caso de PM assassinado em sete meses. E tanto o Amapá quanto o Acre, na Região Norte, responderam não ter ocorrência alguma esta ano. Apenas o Amazonas, também no Norte, não informou os dados sobre os assassinatos em sua tropa.
— O Rio, há muito tempo, se esconde atrás de um discurso de que a violência é um problema do Brasil. Não é. É do estado, e o governo precisa enfrentar suas questões, em vez de reduzi-las e dizer que ele estão num contexto maior. As pessoas não estão ouvindo tiros todos os dias em São Paulo, em Belo Horizonte ou em Brasília — afirma a professora de segurança pública na Universidade Católica de Brasília (UCB), Marcelle Gomes Figueira.
Não é de hoje que essa realidade assombra o Rio. No ano passado, o índice de letalidade também foi alto: 146 PMs mortos, uma média de 12 vítimas por mês. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança, a PM fluminense já era a corporação que tinha, em números absolutos, mais mortes nos anos de 2013, 2014 e 2015. Mas a proporção em relação ao restante do país, agora em 2017, supera a dos anos anteriores. Dois anos atrás, por exemplo, houve 87 PMs mortos no Rio — 29,39% dos 296 de todo o país.
Na onda de violência atual, o caso mais recente aconteceu na madrugada de sábado, dia 12: a policial Elisângela Bessa Cordeiro, de 42 anos, foi assassinada com um tiro na cabeça durante um assalto, em Coelho Neto. O marido, que estava ao lado dela no carro, testemunhou o crime. Os dois voltavam de Nilópolis, onde trabalhavam em uma barraquinha de batatas fritas com a família, quando foram abordados por ladrões, na Avenida Pastor Martin Luther King. Os criminosos atiraram ao descobrirem que a vítima era uma policial.
Poucas horas antes, outro colega de profissão de Elisângela havia sido executado. O soldado Samir da Silva Oliveira, de 37, foi morto em serviço. Ele suspeitou de um veículo e fez a abordagem, na Avenida Vinte e Quatro de Maio, no Méier. Dentro do carro, havia quatro bandidos armados, um deles com fuzil. Ao ser parado, o grupo abriu fogo contra o militar, que chegou a ser levado para o hospital, mas não resistiu. Samir deixou a mulher e uma filha de sete anos. Os ladrões foram presos.
Diferente de Samir, no entanto, a maioria dos policiais mortos no Rio não estava em serviço. Dos 97 até agora, 56 estavam de folga e 20 eram reformados. Para a especialista da UCB, esse fato pode ser atribuído à precariedade dos trabalhos realizados fora da corporação, os “bicos”:
— É mais uma das consequências da ausência de política pública no estado, onde a saúde ocupacional do PM não é objeto de atenção e de interesse. Esse policial trabalha sob forte estresse e dentro de uma lógica de confronto. E, muitas vezes, para complementar o baixo salário, fazem bicos. São serviços que não contam com a estrutura de proteção que ele tem na corporação, onde está sendo monitorado por uma central, pode solicitar reforço e age junto com um companheiro.
Professor do departamento de Segurança Pública da UFF, o antropólogo Lenin Pires faz coro à opinião de Marcelle, e acrescenta outras duas possíveis causas de as mortes ocorrerem, majoritariamente, em dias de folga:
— Há ameaça quando eles estão se deslocando para o chamado segundo emprego e são identificados como policiais por bandidos. Existe essa retórica de guerra, uma lógica de extermínio entre os agentes e os ‘fora da lei’ — opina Pires, que cita uma segunda hipótese. — O regulamento da corporação diz que o policial, mesmo não estando em serviço, tem a obrigação de agir diante de uma ocorrência, sob pena de sofrer sanção. E se ele tem que tomar uma atitude, consequentemente, do outro lado haverá uma contra-resposta. E como o agente está em desvantagem, sozinho e sem equipamentos adequados, isso acaba aumentando o seu risco.
Segundo Pires, nos Estados Unidos e na Inglaterra, por exemplo, os agentes podem optar por não agir, caso julguem a intervenção arriscada. Quando isso ocorre, ele precisa, apenas, justificar sua atitude na corporação, sem sofrer nenhuma pena por isso. Na Argentina, onde o sociólogo realiza trabalhos de campo, o policial de folga, assim como no Brasil, tem que dar uma resposta imediata. No entanto, existe “um apelo pelo bom senso”. A polícia do país vizinho, afirma ele, anda de transporte público, como ônibus e trens, sem ser ameaçada.
Para o sociólogo, o alto índice de letalidade no Rio não é um problema recente:
— Isso é um processo que vem se desenvolvendo há algumas décadas, principalmente nas últimas três. Nos anos 80, essa não era a realidade. Esse crescimento tem a ver com os discursos de ódio e de intolerância, que diz que bandido bom é bandido morto e que a polícia tem que matar.
A estatística de PMs feridos segue a mesma curva ascendente. De acordo com o sociólogo Ignacio Cano, coordenador do Laboratório de Análises de Violência (LAV), da UERJ, nos primeiros cinco meses deste ano, a quantidade de policiais feridos em serviço cresceu 38%, em comparação com o mesmo período do ano passado, segundo um artigo do especialista publicado no GLOBO. A corporação informou que, até ontem, esse número era de 305, sendo 213 em serviço, 86 de folga e seis reformados.
A frota do Rio representa hoje uma taxa de 275 policiais militares para cada 100 mil habitantes — isso significa um policial para cuidar de 363 pessoas. Em 2014, de acordo com último levantamento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), essa taxa era de 280 PMs. Na época, o estado ocupava o sexto lugar da lista de regiões com a maior proporção de agentes por habitantes. Distrito Federal encabeçava o ranking, com 957 policiais para cada 100 mil moradores.
A FARDA DA DOR ETERNA
Reinaldo Bessa, taxista de 52 anos, gira as oito imagens de um porta-retratos em forma de cubo até achar uma delas, que mostra oito pessoas sorrindo. Explica que é a última foto com a família inteira: a mãe, o pai, os quatro irmãos e duas irmãs. “Dois oito, sobraram quatro”, suspira, para cair no choro em seguida. Não estão mais vivos o pai e a mãe, o irmão mais velho, que há dez anos não resistiu a um acidente de moto em Acari, e a irmã Elisângela, que na na foto é uma jovem magrela de cabelos cheios. As lágrimas que escorrem pelo seu rosto são por ela.
— A gente vai morrendo aos poucos — lamenta Reinaldo.
Ele viu Nana (apelido da cabo da Polícia Militar Elisângela Bessa, de 41 anos) pela última vez no dia 11. Passou à tarde pela barraquinha de batatas fritas que a irmã mantinha há alguns meses com o marido, em Nilópolis. Horas depois, Elisângela e o marido Rodrigo encerraram as vendas e foram para casa onde moram, em Colégio. No caminho, foram abordados por criminosos. Elisângela passou os últimos segundos da sua vida tentando segurar a arma de seu assassino. Não conseguiu e foi atingida na cabeça.
Reinaldo, que tem a foto do suspeito de ter baleado sua irmã na memória do celular, a todo momento repete inconformado, olhando para a imagem, “quem mata policial tem que ficar mais tempo na prisão”.
Luto e sonho de formar sobrinha
Elisângela não tinha medo de nada, só de viver sem a mãe. A dor da morte dela, em novembro de 2016, ainda era enorme. Elisângela revezava suas fotos do perfil do Facebook com as da mãe. Irritado, Reinaldo pediu a irmã recentemente que deixasse a mãe “descansar em paz” e parasse de postar as imagens. Ele nem podia imaginar que o mesmo aconteceria com a própria Elisângela, homenageada da mesma forma por amigos e colegas de farda.
Ele e Nana são filhos do potiguar José e da carioca Deise. José passou 35 dias a caminho do Rio em busca de oportunidades. Em solo carioca, trabalhou no que podia, de engraxate a motorista de lotação. Foi nessa função que conheceu Deise e se casou.
José insistia com a mulher que queria ter uma filha. Depois de quatro meninos, veio Nana. O pai exibiu a garotinha para o restante da prole, curiosa, da janela de uma maternidade em Caxias. Daí em diante, Deise criou a menina cheia de cuidados, mas, depois dos 30 anos, Elisângela deixou de lado o trabalho como esteticista para ser policial. Fez o concurso depois de ver que duas cunhadas já tinham passado na prova.
Nos últimos meses, encarava uma segunda jornada na barraca de batatas fritas, o que lhe ajudava também a esquecer a perda da mãe. O sonho da policial, que não tinha filhos, era viajar para Natal, onde o pai nasceu, para formar a sobrinha e afilhada Rayane, de 22 anos, que estuda medicina. O padrinho com quem Elisângela batizou Rayane, policial como ela, também foi assassinado há cerca de seis anos.
Reinaldo, que já foi assaltado 14 vezes, diz que a irmã em pensava em deixar a polícia. Aluna empolgada da academia, guardava o manual dos calouros no quarto que fora dela na casa da mãe, repleto de suas fotos com farda. A bagunça estava à espera de Nana.
— Esperava que ela própria viesse arrumar tudo — diz Reinaldo.
COMANDANTE DEFENDE MUDANÇA NAS LEIS
O comandante -geral da Polícia Militar, coronel Wolney Dias, afirmou que desde 1995 a corporação convive com números elevados de policiais mortos. A diferença, segundo ele, é que mais armamento pesado vêm circulando pelo Rio. Só de janeiro a julho deste ano, foram 246 fuzis e 225 granadas apreendidas pela PM. – Trata-se de um número (de mortos) inaceitável para qualquer sociedade que vive num regime democrático de direito. São números compatíveis a países que vivem em guerra. E este é o cenário vivido no Rio de Janeiro, especialmente na Região Metropolitana. Mas isso não é de hoje. A linha histórica revela que essa tragédia persiste há mais de duas décadas. No ano passado, por exemplo, perdemos 141 companheiros. Em 1995 foram 189 policiais militares mortos. Também é inadmissível a quantidade de armas circulando nas mãos de criminosos. Neste ano, mais de 300 fuzis foram apreendidos no estado. Somente a Polícia Militar apreendeu 246 dessas armas de guerra.
Segundo Wolney, a sociedade precisa fazer uma “ampla reflexão” e se mobilizar por mudanças para reverter o quadro atual. Como o secretário de Segurança, Roberto Sá, o militar também defende mudanças nas leis:
— O nosso código de processo penal está anacrônico. Há uma sensação muito grande de impunidade por parte dos criminosos. Além disso, precisamos combater com inteligência e ações articuladas o tráfico de armas. Praticamente todos esses fuzis apreendidos foram fabricados no exterior.
Perguntado sobre as medidas que a corporação está tomando para evitar que mais policiais morram, numa estatística que chega a quase 100 casos (97), Wolney Dias respondeu que o amparo às famílias das vítimas é fundamental. Segundo ele, o policial tem feito cursos de reciclagem e aperfeiçoamento profissional. Parentes de vítimas chegaram a se queixar que os militares de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) não estavam preparados para os confrontos em favelas.
— A Polícia Militar tem uma preocupação muito grande em dar todo o apoio às famílias dos companheiros mortos, tanto na assistência psicológicas como no suporte financeiro com pagamento de indenizações. A corporação também colocou em prática o Programa de Qualificação e Aperfeiçoamento Profissional (QAP), desenvolvido pela Coordenadoria de Assuntos Estratégicos (CAEs). O policial passa por um processo de reciclagem profissional, melhorando sua capacidade operacional e reavaliando suas condições físicas e psicológicas.
Mas, além dessa reciclagem técnica e psicológicas, só iremos reverter esse quadro, com a revisão do código penal, uma repressão efetiva ao tráfico de armas e, sobretudo, mais investimento em segurança pública e em políticas sociais. A maior parte dos policiais morre em dias de folga, muitos deles prestando serviço à segurança privada para reforçar seu orçamento. Esse trabalho extra pode ser oferecido oficialmente, como já foi feito recentemente com o RAS (Regime Adicional de Serviço) e outros programas semelhantes, que permitem que o policial trabalhe fardado com a proteção do estado — afirmou o comandante.
O DESABAFO DE UMA MÃE
Foi em patrulhamentos noturnos de rotina, em favelas com Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que o sargento Hudson Silva de Araújo, de 46 anos, e o soldado Michel de Lima Galvão, de 32, caíram em emboscadas do tráfico. O primeiro foi morto no dia 23 de julho, no Vidigal, onde, até então, não havia notícias de ataques contra PMs. Já Galvão foi atingido em 21 de fevereiro no Jacarezinho, um território sempre muito hostil para os policiais. O soldado já havia denunciado a falta de equipamentos de proteção adequados e a desvantagem numérica em relação aos “inimigos”. Os dois fazem parte do grupo de 21 policiais militares mortos em serviço este ano.
Cada família dessas vítimas recebeu das mãos de um representante da Polícia Militar uma Bandeira do Brasil, usada para cobrir o caixão. Maria da Glória Silva de Araújo, de 74 anos, mãe do sargento Hudson, sofre tanto que sequer consegue ouvir o nome do filho sem cair em prantos:
— Não tem um dia que eu não chore. Não durmo mais direito. Estou cheia de dores. Dor na alma. No último domingo, Dia dos Pais, fui visitar o túmulo dele. Chegando lá, havia outro policial sendo enterrado. Quantos ainda vão morrer? — questionou Maria da Glória.
Já a dor da cabeleireira Jéssica Pacheco, de 24 anos, mulher do soldado Galvão, é de quem dividia sonhos com o companheiro. O casal pensava em ter um filho e já tinha comprado um terreno para construir uma casa.
— A gente fazia tudo junto. Só nos desgrudávamos quando cada um estava no trabalho. Quando me entregaram a Bandeira do Brasil, que cobriu o caixão, eu a guardei no armário junto com a farda. Não quero olhar para aquilo lá. Só traz a lembrança de como ele lutou para mudar a polícia que está aí hoje, mas acabou morrendo por ela — disse Jéssica.
Fonte: “O Globo”
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