Na semana em que o Santander deu de presente a São Paulo uma nova opção de cultura e lazer no centro da cidade – o Farol Santander, no antigo Banestado –, seu presidente, Sergio Rial, resume a inauguração e o clima que se vive no país numa ideia única: olhar para o futuro. No momento em que o Brasil experimenta “um grave desequilíbrio fiscal”, o grande ícone da capital revive “o arrojo, a pujança, a simbologia do ousar”. O Farol inaugurado no dia do aniversário de São Paulo, diz ele, vem “num contexto de luz, de iluminar e tirar os obstáculos” que pairam à nossa volta. Para a cidade, ele traduz “um proativismo maior, no sentido de que o centro seja absolutamente habitável”.
Foram dois anos de trabalho detalhado, renovando um a um os 35 andares – e enfim o velho “Banco do Estado” passa a pertencer aos paulistanos. Feliz com o feito, o executivo vai contando as novidades – entre elas uma enorme pista de skate, uma horta vertical, o mirante sofisticado, painéis gigantes produzidos por Vik Muniz, um “andar das ideias”…
Logicamente, Rial também olha para fora do prédio e, nesta conversa com a coluna, analisa possíveis caminhos de um país “afundado no desequilíbrio das contas”. A saída? Ele defende “a perseguição absoluta do equilíbrio fiscal e de um Estado capaz de se autofinanciar”. E adverte: “Estamos ainda na transição de um Estado tutelar para um Estado indutor”. Trata-se de abrir caminho “ao potencial que existe em cada um dos 200 milhões de brasileiros”. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Como você viu essa movimentação vai e volta do governo, em relação à “regra de ouro”? O investidor estrangeiro, o Santander lá fora, leu isso de que maneira?
O desequilíbrio fiscal do Brasil é muito grande. Mas maior que isso, é a questão do redesenho estrutural do setor público. Não é a eliminação do Estado, mas sim um Estado diferente, redesenhado, com estrutura e níveis de produtividade diferentes do que vimos até agora. De certo modo, essa discussão do ouro, não ouro, representa um pouco essa questão de redesenhar. E de um Brasil ainda tentando achar caminhos de busca desse equilíbrio fiscal.
Isso dá insegurança?
Acho que não… Esse processo de redesenho das estruturas públicas não é um problema brasileiro, estamos vendo isso ocorrer nos Estados Unidos…
…com a reforma fiscal.
Exatamente. Acabamos de ver uma grande reforma tributária nos EUA, que vai provocar o quê? O colapso de uma série de investimentos e de estruturas, muitas delas importantes. Daí tem de haver preocupação com o social, pois muita coisa talvez a sociedade não esteja disposta a pagar. A gente tem de lembrar que quem paga o Estado somos todos nós, os contribuintes. E eles têm de estar pelo menos alinhados com o que está sendo feito com seu dinheiro.
Recentemente eu perguntei a um economista se pode haver uma “certeza” de que a gente não volta mais atrás, não reaparece a tal “agenda desenvolvimentista”, uma “nova matriz econômica”. Temos essa garantia?
Zero garantia. As sociedades são pendulares. O avanço é sempre tipo dois passos à frente, um para trás – o contrário poderia significar que abrimos mão do modelo democrático. O modelo democrático traz forças políticas em momentos diferentes, que levam a sociedade a votar, pensar e escolher agendas distintas. Não seremos os mesmos em 2022, a agenda do país vai ser outra. O que não deve mudar é a perseguição absoluta do equilíbrio fiscal e de um Estado capaz de se financiar e dar à sociedade aquilo que ela quer. A vocação de quem vai para a atividade pública é eminentemente a de servir, e com o mesmo nível de eficiência que se vê no setor privado.
O modelo desenvolvimentista não cabe mais dentro das contas do Estado. O Brasil quebrou. Será que isso não é suficiente para garantir que não voltamos mais para trás?
É muito difícil simular garantias, pois a sociedade é plural em sua essência. O que me parece a leitura de uma agenda brasileira hoje é menos subsídio, menos Estado, menos cruzamento de subsídios. Não estou advogando a teoria de que tudo se resolve a partir do mercado. Acho essa uma visão romântica, como romântica é também a ideia de que o Estado é o único propulsor do desenvolvimento. São as duas coisas.
‘PENSAR QUE O
BNDES NÃO TEM PAPEL
É PENSAR PEQUENO’
Definir, por exemplo, o papel do BNDES é importante, não?
Pensar que o BNDES não tem um papel no desenvolvimento do país é pensar pequeno e pensar que ele só tem esse papel também é. O Brasil vai ter de aprender a lidar com dualidades que parecem opostas mas são parte de qualquer contraditório social. Mas espero, como brasileiro, que o “S” seja muito maior do que o “E” nos próximos dois anos. O setor privado vai ter um papel, mas não será “o” papel. E o “E” vai existir em projetos de 30, 40 anos. Dando um exemplo concreto, país desenvolvido não é o que tem aeroporto novo, é o que tem aeroporto novo e saneamento básico resolvido.
Por que não há avanço em saneamento básico?
Porque, entre outras coisas, os marcos que regem a questão do saneamento, no Brasil, são municipais. Aí, cada município acaba fazendo o que quer nesse assunto. Está aqui um engodo que poderia ser resolvido numa discussão estrutural, não impositiva, de um “marco inteligente do saneamento”, em que os municípios mantenham um papel fundamental mas com 60% de um marco que regeria todo o país, algum tipo de customização. Porque, obviamente, São Paulo é diferente de um pequeno município do interior do país.
Já existe algum projeto assim?
Não, não há. Esse é um exemplo concreto do “S” em que as empresas poderiam ter todo o interesse, numa área como o saneamento, num país com uma agenda tão bacana de sustentabilidade de energia renovável. A gente aqui fala em etanol e não fala em saneamento, fala em Amazônia e não fala em rios poluídos… São inconsistências que a sociedade tem de enfrentar. A gente se perde muito nessa discussão filosófica entre o desenvolvimentista ou o mercado, é preciso trazer a agenda para assuntos básicos do dia a dia das pessoas. Viver com rios poluídos em São Paulo, a cidade mais rica do país, é no mínimo inaceitável. E nós temos em São Paulo o benefício de uma grande empresa de saneamento, mas é a única, ou uma entre muito poucas. E temos ainda a resistência de alguns Estados e municípios a privatizar.
‘O MUNDO ESTÁ INUNDADO
DE LIQUIDEZ E O
BRASIL ESTÁ PERDENDO…’
O governo não tem mais dinheiro, quem vai construir este país é a iniciativa privada. Como você vê isso?
Vejo de uma forma bastante otimista, mas não com a ausência do Estado. Vejo um papel regulatório em alguns momentos, um indutor. A questão do marco regulatório do saneamento é um papel indutor. Veja o que vem acontecendo na energia, voltamos a um ordenamento mais previsível. Estão aí os leilões, com melhor arrecadação para o governo. Estamos vendo a liberalização do setor petroleiro… O mundo está inundado de liquidez, e o Brasil está perdendo…
O mundo está até afogado em liquidez, né?
Sim, e o Brasil perdendo continuamente uma grande oportunidade de se tornar um mercado ainda mais atraente. O que já somos, com US$ 70 bilhões em investimento direto, mas podemos ser muito mais. No setor privado, vamos pegar o banco. A Selic a 7% ao ano posiciona os bancos de forma muito melhor para serem parte da solução, e não, como até aqui, para estarem ausentes da solução. Porque é impossível você viabilizar qualquer projeto quando a Selic está em 14%. A conta não fecha.
Pode explicar melhor?
Veja o crédito rural. O que acontecia com ele com a Selic a 14% ao ano? Ele era subsidiado a 9% ou 10%. Com a Selic a 7%, isso deixa de fazer sentido. E os bancos privados podem agora fazer parte do processo de financiamento da agricultura, no qual até então era impossível competir.
Nesse caso específico, uma questão de taxa de juros.
Sim, juros. Acho que começa a acontecer um movimento de mexida no compulsório, que é a desconstrução das assimetrias do sistema financeiro. Temos de acabar com essas assimetrias para que o sistema financeiro do país possa competir. Não se trata de criar situações de proteção, seja para bancos públicos ou privados. Os públicos são extraordinariamente competitivos e eficientes, não deveria haver qualquer tipo de proteção. Os cinco grandes deveriam estar competindo pari passu em todos os produtos, sem diferenciação.
E nós estamos nesse caminho?
Acho que sim, mas de forma lenta. Por exemplo, a decisão do governo de liberar os recursos do Fundo de Garantia das contas inativas foi um grande momento em que se reverteu ao indivíduo o poder de alocação dos recursos. Parte da recuperação do varejo, no ano passado, não decorreu de nenhum subsídio a juros, nenhum casuísmo. Simplesmente se devolveu o dinheiro aos agentes financeiros, que na média o alocam infinitamente melhor do que qualquer ente centralizador. O retorno desses bilhões de reais aos indivíduos… por que não levar isso a uma proporção maior ainda? Por que não dar a cada cidadão o direito de gerir, ele mesmo, o seu recurso de FGTS?
‘O BANCO PASSARÁ A SER
UM GRANDE GESTOR DE
INFORMAÇÃO AO CONSUMIDOR’
O mundo caminha rumo à desintermediação financeira. Como os bancos de varejo vão sobreviver?
O banco deixa de ser o que eu chamaria de um instrumento clássico, gestor de recursos e capital, e passa a ser um grande gestor de informação ao consumidor. Quando você para pra pensar, a informação de um cliente, ele espera que o banco a trate com confiabilidade, com toda proteção, para ele dormir tranquilo. Essa é uma tendência inexorável, não vai mudar. Pense no FGTS, por que eu preciso do paternalismo público pra gerir um recurso que é meu, pago por mim e pela empresa onde trabalho?
Me responda…
Porque estamos ainda numa transição do Estado tutelar para um Estado indutor, empreendedor, em que esse empreendedorismo atua a partir da energia do indivíduo, e não da gestão centralizadora do Estado. Trata-se, então, de passar do Estado tutelar para o indutor o potencial que existe em cada um dos 200 milhões de brasileiros. São 200 milhões de pessoas que seguem acreditando na capacidade de criação de valor, apesar de um Estado tutelar a nos ditar todos os dias o que podemos e não podemos fazer – e mais ainda, como podemos fazer. E esse Estado não é o reflexo de um poder, é o desenho dos Três Poderes que acabam criando essa tutela exacerbada, asfixiante, do poder empreendedor de cada brasileiro.
Com essa tendência de desintermediação e transparência, como fica o sigilo fiscal?
Essa é uma questão de cunho legal que os bancos continuarão protegendo. Não nos enganemos, num mundo em que a tecnologia prevalece em absolutamente tudo, com câmeras por toda parte, eu sempre digo: o melhor é não ter nada pra esconder. A tendência é não ter o que esconder. Embarcamos em um mundo em que a transparência vai ser, infelizmente, invasiva. E cabe a cada um de nós certificar-se de que não há nada a esconder. Hoje os nossos dados já estão em poder de três grandes plataformas tecnológicas que sabem tudo o que fazemos, onde compramos, aonde vamos, que táxi pegamos, a que horas estamos na academia… Esse é o início de um processo.
E como você vê a atuação do banco nesse processo?
Eu acho, e tenho dito isso de uma forma contundente dentro do banco, que o digital é extraordinário. O grande desafio que vejo hoje nos bancos é a excessiva industrialização, matando o componente humano. Porque não há nada pior do que você fazer uma reserva pela internet, descobrir que se enganou e não saber como desfazer. Ou então você viajando tem um problema com cartão de crédito e não está seguro de que, digitalmente ou através de algum contato, vai resolver rapidamente. Os bancos têm de começar a pensar que o processo resolutivo passa a ser cada dia mais importante na vida do consumidor. É isso: no banco estamos passando por uma migração. Do que era chamado cliente, que era tratado como um legado, para o consumidor, que vota todos os dias se quer permanecer nesse banco ou não.
‘O QUE EU MAIS TEMO
É QUE TENHAMOS
UM DEBATE POBRE’
E quanto à política? Como você vê o quadro político? Tem gente com medo de que uma divisão do chamado centro – entre Meirelles, Rodrigo Maia e Alckmin – aumente a chance de alguém dos extremos se saia bem na história. Você tem essa preocupação?
Não, por uma questão empírica. Se olharmos o processo de redemocratização, desde 1985, e olharmos todas as eleições, inclusive dos candidatos que perderam nesse período, veremos que a sociedade votou em todos com sua agenda daquele momento. Ou seja, de certa forma a sociedade vai em busca de candidatos que vão resolver ou encaminhar os problemas daquele momento. O que eu mais temo é que tenhamos um debate pobre, acho que o Brasil tem uma grande oportunidade de discutir algumas coisas de médio prazo. Basta olhar o que aconteceu na última eleição. A (falta de) qualidade do debate foi uma das razões pelas quais o país não foi capaz de se dar conta de que já era o momento da mudança.
Teremos aí três, quatro candidatos, com agenda parecida.
Acho que nós temos primeiro o benefício do segundo turno. De certa forma, ele protege a nação de casuísmos e possíveis divisões. Ele não blinda, mas protege. Força uma nova discussão dos candidatos. Acho que, independentemente de centro, ou não centro, e aqui falo não como presidente do Santander, mas como eleitor brasileiro, tem de vir alguém absolutamente reformista.
Um herói?
Herói, não. Mas com a capacidade e coragem de inspirar não ufanismo, nem ser estridente, mas no sentido de trazer os fatos para o redesenho. Para o relançamento de um setor público vibrante, de alta qualidade, bem remunerado, e que tenha por papel ser o indutor do empreendedor brasileiro. Para olharmos um novo desenho tributário do país, como estão olhando os países desenvolvidos. Imagine a Dinamarca com imposto de renda de 20% sobre as empresas? E agora os Estados Unidos, com 21%. Aí estaremos devolvendo à sociedade um poder de investimento…
E de responsabilidade.
Sim, de responsabilidade. No final, não é eliminar o Estado, mas termos um Estado que olha e diz “muitas dessas coisas eu deixarei de fazer, mas continuarei sendo…” Esse é o Estado indutor que vai gerar emprego.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 29/01/2018