Pouca gente, no Brasil, conhece as máfias do crime organizado e seus truques – dentro do País e fora dele – como Walter Fanganiello Maierovitch. Professor de Direito Penal na USP, ex-secretário nacional Anti-Drogas (no governo FHC) e desembargador aposentado no TJ paulista, o jurista acompanhou a escalada de grupos como PCC e Comando Vermelho, nos últimos tempos, com o olhar maduro de quem viu “por dentro”, na Itália, a luta dos juízes para desmontar a máfia siciliana e modernizar as leis anticorrupção do país, a partir dos anos 80.
Tantos anos de janela o levam a olhar desconfiado quando alguém, surpreso com as recentes rebeliões em presídios, fala em um plano de segurança para “controlar as fronteiras do País”. É mais eficaz, avisa, detectar os pontos de contato das quadrilhas e impedi-las de usá-los. Também se espanta ao ouvir alguém propor que se pressione a Bolívia para que controle seus cocaleiros. “O que a Bolívia tem é a folha de coca. Para produzir o cloridrato de cocaína é indispensável obter os insumos químicos. E só o Brasil os produz, no continente.”
Maierovitch, 68 anos, que dirige o Instituto Giovanni Falcone — que estuda o crime organizado –, não vê, no modo como o governo Temer aborda o caos nas penitenciárias, razões para otimismo. “Temos um sistema falido”, afirma nesta entrevista a Gabriel Manzano. “O Estado precisa retomar o controle das prisões. Entender que há uma emergência e que se exigem medidas duras. E principalmente atacar a economia movimentada pelas quadrilhas.” A seguir, os principais trechos da conversa.
O que está certo e o que está errado, a seu ver, no modo como o governo tem tratado o conflito entre facções dentro dos presídios?
Ele tem-se mostrado despreparado. Falta informação, falta comando. A criminalidade é hoje transnacional, está em outro patamar, e parece que isso não é levado em conta. A questão penitenciária não pode ser tratada isoladamente, tem de se considerar a questão da política criminal, as lições de outros países. Tem que ter comando e tratar o caso como uma emergência. A coisa me parece fora de foco.
E qual é o foco certo?
O número um, a meu ver, é resolver o alto porcentual de reincidência do sistema. Está na casa dos 80%. Quer dizer, de cada dez presos do País, oito voltam à cela. É como se o Estado estivesse jogando ioiô, temos uma superpopulação carcerária que inviabiliza planos de recuperação. E por que isso acontece? Muitos presos não voltariam se a pena cumprisse a finalidade de emendar, ressocializar.
Mas isso está longe de acontecer.
E por quê? Porque nas prisões não existe o controle do Estado. Quem controla são os líderes dos presos. E pior, em muitos casos os governantes estão privatizando essa função de recuperar, o que é inconstitucional. Quem tem de cuidar da execução penal é o Judiciário. Só se pode terceirizar serviços de apoio, do tipo “vamos fechar a cozinha e contratar marmita”. Não se pode terceirizar a missão social de ressocialização. Isso é que faz do atual sistema um sistema ineficaz e falido. E esse problema se agrava fora da cadeia.
De que forma?
Como não há ressocialização, em muitos casos o preso sai, não arruma emprego, não tem outros apoios, acaba conseguindo um bico com ajuda dos conhecidos da cadeia. Aí se torna mais um peão do esquema. Se antes não estava integrado no crime, agora está.
No caso das recentes rebeliões — em Manaus, Boa Vista e agora em Natal — o que o presidente Temer fez de errado?
À parte ter “amarelado”, ao demorar três dias para falar – um silêncio obsequioso ao crime organizado – ele viu o episódio com lentes de político. Tem de voltar a usar as suas lentes de constitucionalista.
O que isso quer dizer?
Não cometer o erro de achar que a questão é dos Estados. Não é. Se olhar o artigo 34, inciso III da Constituição, verá que é responsabilidade da União pôr termo a grave comprometimento da ordem pública. Se olhar o artigo 21, inciso III, perceberá que é missão da União, também, assegurar a defesa nacional. Ele tinha de chamar a si, desde o início, o comando e a responsabilidade pelo caso e ver que se tratava de uma emergência. Porque, no topo de rebeliões como as que acabamos de ver, está-se lidando com grupos que têm controle de território, controle social e controle nas prisões. Eles mantêm uma estrutura sofisticada, com ramificações fora do País. Não dá pra ficar distribuindo recursos, raios-X, carros de polícia, força nacional…
Essas providências estão erradas? Por quê?
O que acontece é que na maior parte dos casos tal esforço é inútil. O inimigo não é burro. Já é sabido que, depois das batalhas, as organizações mafiosas costumam submergir. Os italianos conhecem isso bem. Havia revolta na Sícília, o governo em Roma deslocava forças para controlar tudo na ilha e os quadrilheiros iam descansar uns meses no continente. Depois a polícia voltava pra Roma e os bandidos voltavam a Palermo.
Mas o governo não pode ficar esperando. O que teria de fazer?
Tem que ter comando, prioridades claras. Estamos numa emergência e precisamos de medidas duras, para corrigir e depois voltar ao normal. A primeira tarefa é entender como atua o inimigo. Saber que as quadrilhas controlam seus territórios, nos quais impõem sua própria lei. Foi para o espaço, nos presídios, a disciplina interna, que é missão e dever indelegável do Estado. Lembro que naqueles ataques do PCC em São Paulo o Estado acabou fazendo um acordo do tipo “vocês podem mandar aí dentro da cadeia. Só não podem fugir”. E assim os líderes ampliaram sua ação. O Estado não conseguiu desplugar nenhum deles das atividades que desempenhavam.
Se não os desplugaram, eles continuaram na ativa, só mudaram de endereço…
É preciso entender que para o preso, em especial o líder, é crucial continuar a se comunicar com sua turma. Ele se vê como presidente de seu “Estado paralelo”, onde impõe sua lei. Ora, quando um sujeito assim é detido, precisa ficar claro que ele não manda mais nada em coisa nenhuma, nem no seu Estado delinquencial. A punição só se concretiza quando esse chefe de quadrilha sente que sua profissão acabou. Que daí por diante o Estado é quem decide tudo na vida dele.
No entanto, não é o que acontece.
Não é mesmo. O que vemos é que um sujeito é preso e já no dia seguinte tem uma lista de cinco “visitas íntimas” acertadas com a direção do presídio. O problema não é a visita íntima, é entender que essa gente constitui sua equipe de pombos correios, que distribui suas ordens à rede. Deixar o líder continuar liderando da cela é uma grave derrota da qual o Estado não se esforça para se recuperar. Retomar o comando dos presídios é essencial, inadiável.
Por que é tão difícil impedir que usem celulares na cadeia?
Por causa da corrupção. Coisa que a Itália resolveu – por exemplo – fiscalizando de perto a vida financeira dos diretores de presídios e seus auxiliares. E valorizando e qualificando os agentes penitenciários.
Falou-se em criar um ministério para a segurança nacional, ou recriar o do Interior.
Quanto custaria isso? O Ministério da Justiça, que anda esvaziado, tem uma Secretaria Nacional de Segurança Pública que pode cuidar do assunto, sem mais cargos, despesas e altos salários. E temos um conselho penitenciário. Tínhamos é que preservar as coisas boas. No Carandiru havia um serviço competente de biotipologia, que conhecia cada preso, avaliava as penas e sua eventual redução. Foi tudo jogado pela janela com o fim do presídio.
Ao que se sabe, cerca de 42% dos 622 mil presos do País estão na cadeia indevidamente – com pena já vencida ou ainda sem sentença. Praticamente 300 mil pessoas. Se o Judiciário fosse mais ágil, a população carcerária seria quase metade e o cenário seria bem outro, não?
De fato, e aí se constata que a execução penal no País está jurisdicionalizada. Na União Europeia, processos têm prazo de duração e quando passam do limite as pessoas são indenizadas. De tantas instâncias e tantos recursos, criou-se aqui essa condição de preso provisório. E surgiu também a execução provisória. Mas no geral a nossa lei de execução penal é moderna, a ponto de não termos como viabilizá-la. É um sistema que começa no fechado, vai pro semiaberto, daí pro aberto. Só que um preso, por exemplo, com oito anos de pena, com um sexto já pede o semiaberto, em seguida pede o aberto, que é prisão-albergue. Como não há prisão-albergue, ele mete um habeas corpus e consegue prisão domiciliar. Ele vai pra casa. E quem fiscaliza essa pessoa, se ela trabalha de fato, se cumpre os horários?
E qual o impacto disso tudo?
Posso lhe lembrar o que aconteceu em Manaus. O pessoal do semiaberto, que fica preso bem ao lado do fechado, fez um buraco na parede e passou armas pro pessoal do outro lado. Não custa lembrar que no século XIX já tinha gente, nos EUA, estudando a arquitetura ideal das cadeias, separando prédios, pra maior segurança da sociedade. Aqui fazemos uma cela de semiaberto ao lado de outra em regime fechado. Um buraco liga os dois lados.
Enfim, com a atual guerra entre facções nas cadeias, diria que o País não tem como conter o crime organizado?
Diria que o governo, pelo que temos visto, não tem foco nem estratégia. É fundamental ele entender que o crime é transnacional. Uma quadrilha é uma grande empresa cuja meta é ganhar dinheiro e ampliar seu mercado, vendendo principalmente droga e armas — mas hoje se estende a muitas outras áreas da economia. E para toda essa atividade essas máfias precisam de uma infraestrutura que inclui estradas, hotéis, campos de aviação, comunicações, contatos. Para acabar com essa rede, você tem de destruir a economia movimentada por ela. E o que o Brasil fez a respeito? Zero.
Fala-se na urgência de controlar as fronteiras. É uma iniciativa importante?
A ênfase que se dá ao “controle das fronteiras” é uma enorme bobagem. As máfias não chegam pela selva pra entrar e viver na selva. Elas buscam cidades, gente, pontos de contato, coisas não tão difíceis de detectar. Como Tabatinga, onde está a tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia. Tem é que descobrir, com a inteligência, os pontos cruciais dessa movimentação e impedir seu uso.
Mas ajudaria se fosse organizada uma ação comum com os vizinhos para impedir a entrada de drogas e armas para PCC, CV e outros grupos?
Um candidato à Presidência, tempos atrás, falou disso, que era preciso pressionar a Bolívia pra que ela controlasse a cocaína, evitando que esta chegasse ao Brasil. Não faz sentido. A Bolívia entra nessa história só com a folha de coca, a matéria-prima. O que permite produzir o cloridrato de cocaína são insumos químicos. E adivinhe qual é o país que tem a maior indústria química do continente e dispõe desses insumos? O Brasil. Nem Peru, nem Bolívia nem Colômbia os têm.
O Brasil poderia, então, conter esse comércio e atrapalhar a distribuição da droga?
Quando eu estava no governo, fiz um estudo com o secretário de Justiça de São Paulo, Belizário dos Santos. Ele descobriu com a Associação Comercial de São Paulo que havia milhares de locais de venda desses insumos químicos. E nos seus endereços, não havia nada. Era tudo ficção, empresas laranjas, comprando insumos de grandes indústrias para usar ou revender. Sabia-se que uma das conexões era Trinidad e Tobago, de onde ia tudo para a Colômbia. Essa é a rede, esse é o tamanho do adversário. O que temos no Brasil são pré-mafias locais que estão plugadas nela.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 16 de janeiro de 2016.
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