Do absolutismo português à democracia de massa deste início de século, no Brasil sempre foi parâmetro cultural o pretenso direito de esperar o apoio abrangente, se não a dádiva do Estado – da mão provedora, do protecionismo e emprego público, à caridade assistencialista. Vivemos como rotina a sujeição da cidadania ao Estado (à estadania) e sempre admitimos que o progresso depende menos do esforço e sacrifício da sociedade e mais, ou até essencialmente, da iniciativa e de medidas do Estado.
Essa lógica leviatã é refletida na fantasia ufanista da grandeza nacional espontânea em razão da extensão territorial e dos recursos naturais do país. Grandeza na verdade virtual, cuja transformação em riqueza útil ao povo depende da correta dimensão da presença do Estado na vida nacional e da competência, criatividade, investimento e muito trabalho da sociedade – ingredientes do excelente desenvolvimento dos EUA no século 19, de país colonial à 1ª potência do mundo, em que o Estado era mais estímulo e regulador do que agente direto: ajudava, não atrapalhava. Se território e natureza fossem riqueza em si, Suíça, Holanda e Bélgica seriam pobres, Luxemburgo paupérrimo… As manifestações de vaidade poética do hino nacional – “gigante pela própria natureza”, “deitado eternamente em berço esplêndido” e “impávido colosso” – refletem esse ufanismo inebriante. Faltam-lhes um complemento sobre o esforço necessário para que o “impávido colosso” se levante do “berço esplendido” e transforme “a própria natureza” em riqueza, para que o Brasil deixe de ser o “país do futuro”, assim classificado há 70 anos por Stefan Zweig, passando ao patamar a que de fato o credencia seu potencial.
Existem na sociedade brasileira as condições necessárias à odisséia da grande transformação, haja vista o razoável sucesso de setores de nossa economia – é bem verdade que, mesmo eles, em geral fãs das muletas estatais – o cofre provedor e a alfândega protetora…. Mas ainda falta muito para engajá-la toda na reorientação da confortável idéia de grandeza como fortuna natural ou propiciada pela mágica estatal, para a efetiva construção nacional. E isso não será fácil enquanto parte ponderável do caráter coletivo continuar preferenciando a expectativa da felicidade impulsionada pelo Estado sobrenatural do conceito expresso há quase 200 anos por Fréderic Bastiat: “o Estado é a grande ficção através da qual todo mundo se esforça para viver à custa de todo mundo”. Todo mundo mesmo: dos políticos e apaniguados que se sentem com direito ao patrimonial-clientelismo do butim eleitoral, dos segmentos empresariais e seu trabalho associado, apoiados em financiamentos públicos, protecionismo e renúncias fiscais, dos servidores públicos que se crêem credenciados às benesses de sócios preferenciais do Estado, aos conformados consumidores de assistencialismo.
Tampouco será fácil enquanto grande parte da sociedade brasileira continuar aceitando satisfeita a euforia das ilusões, disseminada pela propaganda narcótica enaltecedora do estatismo salvacionista, que se vale de fatos positivos (entre outros, na moda hoje o petróleo do pré-sal, por muito tempo ainda riqueza virtual do “gigante pela própria natureza”…), metáforas fantasiosas e afirmações grandiloqüentes, para dissimular as atribulações que castigam o país: a preocupante involução aética da política, cujos efeitos permeiam tudo o mais, a iniqüidade social e a exclusão conformada pelas bolsas disso e daquilo, o precário quadro da educação e da saúde (com gente morrendo nos corredores de hospitais públicos – o que não constrange a previsão de obras grandiosas para eventos esportivos internacionais que deixarão felizes empreiteiras e afins…), o desenfreado desrespeito à lei, do delito trivial à violência e criminalidade epidêmicas, estradas destruídas, portos ineficientes, regime carcerário desumano, Judiciário de lentidão proporcional à sua singularidade no universo salarial brasileiro, Legislativo desacreditado pela semi-paralisia e práticas de (eufemismo delicado) discutível virtude… – dezenas de deficiências que afrontam a euforia.
Aqui, como em qualquer parte do mundo, não é seguro afirmar que a saga política seja indefinidamente imune à combinação das deficiências do Estado no desempenho de suas responsabilidades, com a fé fanática no Estado e a abdicação da cidadania ao Estado, seja imune à frustração psicopolítica do caráter coletivo, propenso à dádiva do “impávido colosso” e do gigantismo “pela própria natureza”, à êxtase do carnaval e feriadão, às idéias paradisíacas de bem estar natural (da redução da jornada de trabalho, que o “impávido colosso” mágico viabilizaria sem perda de competitividade e sem custo ao consumidor…), a que a euforia ilusória aporta seu alento anestésico.
Não há hoje clima para regimes ao estilo século 20. Mas não se pode afirmar idêntica implausibilidade para o salvacionismo messiânico travestido de legalidade eleitoral-democrática, sob lideranças carismático-sebastianistas hábeis na fórmula romana “pão e circo”: o pão assistencialista e o circo do oba-oba eufórico, hoje muito pré-salgado e agora também olímpico, a que a mídia cooptada pela propaganda aporta sua prestidigitação, em especial a TV, cuja imagem dispensa o raciocínio crítico. Tudo no figurino populista-estatista que parece estar voltando à América do Sul, à reboque da Venezuela, após 25 anos de recesso.
Os autoritarismos da esquerda à direita, sempre estiveram afinados com o estatismo exacerbado e a abdicação da cidadania ao Estado, ambos inconciliáveis com a democracia plena. Até porque, se o Estado é pretendido como provedor onipresente, deve caber-lhe naturalmente a autoridade correspondente – uma equação histórica de que o Brasil aparentemente não está livre.
(O Estado de São Paulo”, 17/10/2009)
No Comment! Be the first one.