“A pobreza tem cor e raça”. O adágio revela uma concepção sobre o Brasil, difundida pela Seppir (Secretaria da Igualdade Racial) e pelo cortejo de ONGs defensoras das leis raciais. O Brasil não seria uma sociedade de classes atravessada por profundas desigualdades de renda mas uma sociedade estamental dividida rigidamente por fronteiras “raciais”. Até há pouco, a demonstração “científica” dessa concepção dependia de perversas interpretações seletivas de informações disseminadas pelo IBGE. A dificuldade foi solucionada pela pesquisa “Retratos da Desigualdade”, publicada pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
A manipulação de estatísticas com fins ideológicos é uma velha arte. O IBGE quase sempre conseguiu passar incólume pela tentação de torturar os números até fazê-los confessar aquilo que interessa ao poder de turno. O IPEA aceitou se converter em câmara de tortura: a pesquisa suplicia informações do banco de dados do IBGE até “provar” os seus próprios pressupostos.
O ponto de partida é um choque de alta voltagem: a fusão das categorias censitárias “pretos” e “pardos” na categoria ideológica “negros”. Para o IBGE, “pardos” são 42% dos brasileiros, um número que surge da soma de todos que não se declaram “brancos” (51%), “pretos” (6%), “amarelos” ou “indígenas” (1%). Na vida real, os “pardos” são os quase-brancos, quase-índios, quase-pretos da geléia geral brasileira. Os fanáticos das raças, embaraçados pela “impureza”, simplesmente decidiram eliminá-los das estatísticas, sob o argumento arbitrário de que são “afrodescendentes”. Na Amazônia, por exemplo, eles refletem mais um substrato indígena e podem não ter ascendência africana significativa.
Mas a pesquisa quer chegar a um fim definido e não se detém diante de obstáculos éticos, como o princípio da autodeclaração, ou científicos, como a genética. A supressão dos “pardos” produz magicamente um Brasil dividido ao meio em “brancos” e “negros” (48%), o modelo ideal para os engenheiros de leis raciais. Essa operação é o pilar estrutural da pesquisa, sem o qual suas conclusões desmoronariam: os indicadores do IBGE mostram que, em média, os “pardos” têm menor rendimento médio e menos anos de estudo do que os “pretos”, um forte indício de que as desigualdades sociais não decorrem do preconceito racial.
Depois do choque elétrico, é tempo de uma sessão de afogamento: a opção preferencial pelas médias gerais. A abordagem metodológica rudimentar não decorre de incompetência técnica mas da paixão ideológica, permitindo extrair as “confissões” paralelas de que os pobres são pobres por serem “negros” e de que a pobreza não “gruda” em pessoas de pele menos escura.
No Brasil, o 1% mais rico da população, constituído essencialmente por “brancos”, detém renda quase igual à dos 50% mais pobres. Essa disparidade extrema puxa para cima todas as médias referentes aos “brancos”, escondendo as massas de pobres com pele clara que habitam as periferias das metrópoles, o sertão nordestino e as várzeas amazônicas. É o cenário estatístico dos sonhos, num país onde o governo federal já patrocina cursos de alfabetização em favelas exclusivos para “negros”.
Finalmente, utiliza-se a palmatória para dissuadir a vítima de falar sobre as desigualdades regionais. Cerca de 75% dos “brancos” vivem no Sudeste e no Sul, as regiões mais ricas do país, enquanto 53% dos “negros” vivem no Nordeste e no Norte, as regiões mais pobres. Segundo dados do IBGE, os “negros” do Sudeste e do Sul apresentam indicadores sociais melhores que aqueles dos “brancos” do Nordeste e do Norte. Esses cruzamentos de informações brilham pela ausência na pesquisa dos fanáticos das raças. Mas quem não é fanático sabe o que eles revelam: a “questão regional” é muito mais relevante que a “questão racial” para explicar as desigualdades sociais no Brasil.
Os “Retratos da Desigualdade” do IPEA são qualificados, no texto de apresentação, como “poderoso instrumento na luta” pela igualdade de raça. Eis, para variar, uma afirmação incontestável: a pesquisa é um discurso puramente ideológico, veiculado por órgão de Estado como se fosse investigação sociológica. A sua meta não é iludir as pessoas familiarizadas com estatísticas mas subsidiar a propaganda política oficial.
No Brasil, a pobreza não tem cor – ou, melhor, tem todas as cores. Essa evidência, que traz implicações políticas óbvias, não interessa aos promotores das leis raciais e deve ser calada no momento em que o Congresso se prepara para votar o Estatuto Racial. Assim se faz “política social” sem custo financeiro, mas com elevados dividendos eleitorais.
O Globo, 08 de fevereiro de 2007
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