Neste ano, na qualidade de funcionário de carreira do BNDES, tocou-me presidir um dos processos licitatórios do banco. A licitação, de certa importância, visava à aquisição de um software para o controle de risco da instituição. Por coincidência, o período no qual me coube desempenhar a tarefa coincidiu com a profusão de escândalos, alcançando os mais diferentes partidos, órgãos públicos e esferas de poder. Foi interessante refletir acerca dos contrastes entre as práticas viciadas de alguns órgãos públicos relatadas nos jornais e a forma correta em que tais licitações são conduzidas em outras instituições, como o BNDES.
Lidando com as empresas participantes do certame e cuja atitude foi, ao longo do processo, de uma correção exemplar, a primeira reflexão que me ocorreu foi que o contexto é fundamental. Da mesma forma que nenhum brasileiro – mesmo que os habituados a tirar R$ 50 do bolso para corromper um policial de rua – perguntaria a um guarda nos EUA quanto custaria ficar livre de uma multa, pois seria preso no ato por tentativa de suborno, as empresas que participam de processos honestos agem com honestidade. Os ilícitos têm duas pontas: quando não há demanda, a oferta não aparece.
A segunda reflexão tem que ver com os procedimentos. Por que há áreas da administração sempre envolvidas em escândalos, seguidas vezes advertidas pelos órgãos de controle, enquanto, nas áreas em que as práticas são honestas, as intervenções suspensivas, terminativas ou anulatórias por parte do Judiciário ou do Tribunal de Contas da União (TCU) são raras? Não é só o ambiente humano que conta, mas também os aspectos institucionais. Em particular, três questões são importantes para que uma licitação seja mais bem “blindada” contra a corrupção: 1) a existência de processos decisórios envolvendo diferentes instâncias e pessoas; 2) a segregação de funções, separando a responsabilidade da condução administrativa do processo em relação à da área interessada na compra, minimizando as chances de conflito de interesses e introduzindo um componente-chave de independência e imparcialidade; e 3) a correta justificativa pública das decisões emanadas em cada uma das etapas, de maneira a municiar a todos os agentes com os elementos necessários para constranger possíveis irregularidades.
Assim, a estrutura se encarrega de inibir a atuação de quem possua um DNA incompatível com a lisura: quem não é honesto simplesmente não tem como se beneficiar de propinas, pela forma em que está organizado o processo decisório.
Finalmente, a terceira reflexão envolve os demais participantes desse tipo de processos. Nestes, por vezes o material a ser julgado é composto por volumes com grande número de páginas, que nem sempre podem ser lidos em detalhe por quem assina os documentos. Nesse processo, a confiança em quem está na base do sistema é fundamental. É crucial escolher, para as tarefas de leitura e avaliação de uma licitação, funcionários dedicados ao serviço público, com zelo e que tenham um firme compromisso com a ética.
O Brasil precisa ampliar os espaços do setor público nos quais as compras se processam da forma em que isso se dá na “banda boa” da administração. Quem analisa os escândalos na aquisição de material que se sucedem no País, governo após governo, encontra os mesmos elementos em comum: indicações políticas para cargos de direção em certas empresas; estatais com antecedentes de irregularidades; funcionários conhecidos por se prestar a “dirigir” licitações em troca de recursos; e caixa 2 das eleições. Os métodos foram descritos de forma crua por Roberto Jefferson por ocasião do “mensalão”. Para entender a essência do problema, basta pensar por que um partido tem interesse em indicar o diretor de compras de uma estatal. Não é preciso ser especialista em ciência política para concluir qual é a resposta.
Já que parte do setor público foi “leiloada” por interesses partidários privados, a saída envolve uma combinação de: 1) limitação drástica do número de cargos de confiança a ser preenchido por indicação política, a exemplo das práticas observadas nos países mais avançados; 2) preenchimento da maior parte dos cargos das estatais com base em critérios técnicos; e 3) nomeação de funcionários públicos com o currículo adequado para os cargos responsáveis por decisões envolvendo grandes volumes de compras. Em resumo: precisamos estatizar o Estado!
(O Estado de SP – 23/12/2009)
Neste ano, na qualidade de funcionário de carreira do BNDES, tocou-me presidir um dos processos licitatórios do banco. A licitação, de certa importância, visava à aquisição de um software para o controle de risco da instituição. Por coincidência, o período no qual me coube desempenhar a tarefa coincidiu com a profusão de escândalos, alcançando os mais diferentes partidos, órgãos públicos e esferas de poder. Foi interessante refletir acerca dos contrastes entre as práticas viciadas de alguns órgãos públicos relatadas nos jornais e a forma correta em que tais licitações são conduzidas em outras instituições, como o BNDES.
Lidando com as empresas participantes do certame e cuja atitude foi, ao longo do processo, de uma correção exemplar, a primeira reflexão que me ocorreu foi que o contexto é fundamental. Da mesma forma que nenhum brasileiro – mesmo que os habituados a tirar R$ 50 do bolso para corromper um policial de rua – perguntaria a um guarda nos EUA quanto custaria ficar livre de uma multa, pois seria preso no ato por tentativa de suborno, as empresas que participam de processos honestos agem com honestidade. Os ilícitos têm duas pontas: quando não há demanda, a oferta não aparece.
A segunda reflexão tem que ver com os procedimentos. Por que há áreas da administração sempre envolvidas em escândalos, seguidas vezes advertidas pelos órgãos de controle, enquanto, nas áreas em que as práticas são honestas, as intervenções suspensivas, terminativas ou anulatórias por parte do Judiciário ou do Tribunal de Contas da União (TCU) são raras? Não é só o ambiente humano que conta, mas também os aspectos institucionais. Em particular, três questões são importantes para que uma licitação seja mais bem “blindada” contra a corrupção: 1) a existência de processos decisórios envolvendo diferentes instâncias e pessoas; 2) a segregação de funções, separando a responsabilidade da condução administrativa do processo em relação à da área interessada na compra, minimizando as chances de conflito de interesses e introduzindo um componente-chave de independência e imparcialidade; e 3) a correta justificativa pública das decisões emanadas em cada uma das etapas, de maneira a municiar a todos os agentes com os elementos necessários para constranger possíveis irregularidades.
Assim, a estrutura se encarrega de inibir a atuação de quem possua um DNA incompatível com a lisura: quem não é honesto simplesmente não tem como se beneficiar de propinas, pela forma em que está organizado o processo decisório.
Finalmente, a terceira reflexão envolve os demais participantes desse tipo de processos. Nestes, por vezes o material a ser julgado é composto por volumes com grande número de páginas, que nem sempre podem ser lidos em detalhe por quem assina os documentos. Nesse processo, a confiança em quem está na base do sistema é fundamental. É crucial escolher, para as tarefas de leitura e avaliação de uma licitação, funcionários dedicados ao serviço público, com zelo e que tenham um firme compromisso com a ética.
O Brasil precisa ampliar os espaços do setor público nos quais as compras se processam da forma em que isso se dá na “banda boa” da administração. Quem analisa os escândalos na aquisição de material que se sucedem no País, governo após governo, encontra os mesmos elementos em comum: indicações políticas para cargos de direção em certas empresas; estatais com antecedentes de irregularidades; funcionários conhecidos por se prestar a “dirigir” licitações em troca de recursos; e caixa 2 das eleições. Os métodos foram descritos de forma crua por Roberto Jefferson por ocasião do “mensalão”. Para entender a essência do problema, basta pensar por que um partido tem interesse em indicar o diretor de compras de uma estatal. Não é preciso ser especialista em ciência política para concluir qual é a resposta.
Já que parte do setor público foi “leiloada” por interesses partidários privados, a saída envolve uma combinação de: 1) limitação drástica do número de cargos de confiança a ser preenchido por indicação política, a exemplo das práticas observadas nos países mais avançados; 2) preenchimento da maior parte dos cargos das estatais com base em critérios técnicos; e 3) nomeação de funcionários públicos com o currículo adequado para os cargos responsáveis por decisões envolvendo grandes volumes de compras. Em resumo: precisamos estatizar o Estado!
(O Estado de SP – 23/12/2009)
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