Seis anos depois do estouro da bolha financeira no mundo rico, explode no Brasil a bolha da incompetência e do populismo. O novo aumento de juros e a promessa de um esforço fiscal maior no próximo ano são um reconhecimento, pelo menos implícito, dos estragos produzidos em quatro anos de erros, de remendos mal feitos e de um espantoso “modelo” de expansão do consumo sem aumento da produção.
Quem anunciou o esforço fiscal maior foi o quase ex-ministro da Fazenda, Guido Mantega, pouco antes de conhecido o balanço das contas públicas até setembro. O secretário do Tesouro, Arno Augustin, voltou a prometer resultados melhores no mês seguinte. Qualquer promessa desse tipo, nesta altura, soa como piada. Para alcançar o superávit primário de R$ 80,8 bilhões fixado para o governo central, neste ano, seria preciso obter no último trimestre um saldo de R$ 96,5 bilhões, pelas contas do Tesouro, ou R$ 100,27 bilhões, pelo critério do Banco Central (BC). Sem mistério: no relatório do Tesouro, o governo central teve um déficit primário de R$ 15,7 bilhões em nove meses; no do BC, o buraco chegou a R$ 19,47 bilhões. Pelo segundo critério, leva-se em conta a necessidade de financiamento.
Neste ano, pelo menos até setembro, fracassou até a encenação de um superávit primário anabolizado com dividendos, bônus de concessões e prestações de tributos em atraso. O governo acaba de conseguir do Congresso Nacional mais uma reabertura do Refis, o programa de parcelamento de dívidas tributárias. A anterior, encerrada em 25 de agosto, proporcionou menos dinheiro que o esperado. Mas esse tipo de manobra, já muito usado, produz sempre alguma receita por um prazo curto e é condenado mesmo no governo como um incentivo à sonegação. Afinal, se é sempre possível apostar num novo Refis, impor um calote ao Tesouro pode ser bom negócio.
Mas o déficit primário acumulado em nove meses chama a atenção para um dado muito mais importante, a longo prazo, e tomado como guia da política fiscal em países com melhores tradições de governo. A administração pública tem de produzir superávits primários para cobrir os juros e amortizações devidos pelo Tesouro. No fim, o número realmente importante é o resultado nominal, isto é, o saldo geral das contas públicas, incluídos os pagamentos de juros e amortizações. O desastre fiscal no mundo rico, a partir da crise iniciada em 2008, foi sempre medido com base nesse conceito.
Por esse critério, o Brasil já estava em pior situação que muitos países desenvolvidos, no ano passado, e a comparação se tornou ainda mais desfavorável em 2014. Nos 12 meses até setembro o déficit nominal do setor público brasileiro chegou a 4,92% do produto interno bruto (PIB). Na zona do euro, a média dos déficits deve ficar em 2,9% neste ano, segundo projeção publicada em outubro pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).
Apesar disso, a presidente Dilma Rousseff ainda insistia, até há pouco tempo, em apontar a situação fiscal do Brasil como muito melhor que a da maior parte dos países desenvolvidos. Talvez ainda insista. Afinal, seu nível de informação é, na melhor hipótese, tão bom quanto o de seus assessores econômicos. Além do mais, ela e seus auxiliares sempre poderão, em último caso, apontar o endividamento público das economias avançadas, muito maior que o do Brasil. Mas qualquer argumento desse tipo se esfarela quando se comparam as notas de crédito soberano daquelas economias e as do Brasil.
A diferença reflete-se na distância entre os juros pagos pelos governos para vender ou rolar seus títulos. Os custos enfrentados pelo Tesouro brasileiro são muito maiores. A desvantagem do Brasil no mercado financeiro poderá aumentar, nos próximos dois anos, se o governo for incapaz de reforçar sua credibilidade. Dirigentes de agências de classificação de risco têm transmitido recados muito claros nos últimos dias. Têm chamado a atenção tanto para o mau estado das contas públicas quanto para o baixo crescimento econômico.
Uma piora da classificação poderá ser especialmente danosa numa fase de aperto nos mercados. O Federal Reserve, o banco central americano, anunciou o fim de sua política de incentivos monetários à recuperação da economia dos Estados Unidos. Isso representará o fim de grandes emissões de dinheiro para facilitar o crédito. O próximo grande passo deve ser uma elevação dos juros básicos americanos. A data ainda é desconhecida, mas quem tiver juízo tratará de se preparar para condições mais difíceis de financiamento internacional.
Um aumento dos juros básicos no Brasil pode ser uma resposta a esse aperto progressivo do mercado financeiro externo. Afinal, um dos efeitos prováveis da mudança nas condições internacionais será um desvio de capitais para os Estados Unidos ou, de modo geral, para destinos mais seguros. Mas o Banco Central brasileiro tem um forte motivo interno para retomar a alta de juros. A elevação de 11% para 11,25%, anunciada na quarta-feira, pode ser o primeiro passo de um ajuste.
A inflação seguiu o rumo previsto por muitos economistas desde o primeiro semestre. Perdeu impulso na primeira metade do ano e em seguida voltou a subir vigorosamente, alimentada principalmente por distorções da economia nacional – desajuste das contas públicas, crédito ainda em expansão, aumentos salariais superiores aos ganhos de produtividade e capacidade de oferta industrial muito limitada. A inflação brasileira, o baixo ritmo de atividade, o desastre das contas públicas e a piora das contas externas – com déficit comercial de US$ 1,88 bilhão, no ano, até 26 de outubro – refletem o mesmo conjunto de erros da política econômica. O tal modelo de crescimento proclamado como grande inovação nos últimos anos produziu – muito mais que um fracasso – um desastre de dimensões incomuns. O desastre ficará muito maior se a presidente Dilma Rousseff tiver ignorado também essa lição.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 1º/11/2014
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