Uma das coisas de que não gosto nessas minhas viagens semanais é me sentar na poltrona do meio. São trechos longos, como Macapá ou Boa Vista-Rio. Preciso trabalhar, mas o espaço fica muito contraído, e detesto incomodar o sonolento vizinho do corredor quando preciso ir ao banheiro.
Jamais pensei que faria um texto cujo tema é o assento 23B. Mas essa sensação de estar meio espremido, sem horizontes, lembrou-me de minhas inquietações espaciais na Rússia.
Fotografei muitos prédios em todos os estilos, mas queria ressaltar a arquitetura stalinista, sobretudo um grupo de arquitetos surgidos na época do Plano Diretor, quando tudo deveria se submeter aos desígnios do Estado.
Os intelectuais eram chamados de engenheiros das almas, e esse grupo de arquitetos projetou inúmeros prédios onde tudo era coletivo. Todos os que conhecem a história recente da Rússia sabem que a vida se tornou muito difícil nessa atmosfera desenhada e que as pessoas costumavam até comer na cama, desesperadas por uma nesga de privacidade.
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Vejo agora que uma escola de Tocantins, da cidade de Formoso do Araguaia, ganhou um prêmio internacional de arquitetura, o melhor prédio escolar do ano. As fotos das estruturas de madeira são bonitas. A história, mais reveladora ainda. O projeto da escola, na Fazenda Canuanã, foi realizado pelo designer Marcelo Rosenbaum e o escritório de arquitetura Aleph Zero.
Os autores contaram com a ajuda dos alunos que moravam no prédio e indicaram as linhas por onde deveria ser melhorado. Eles diziam que moravam na escola. Agora, não dizem mais. Um traço da mudança foi abrir mais espaços para a privacidade individual.
Portanto, o êxito dos arquitetos brasileiros avançou exatamente no sentido oposto ao dos stalinistas. Certamente, foram ajudados pela opinião dos estudantes.
Mas a simples inquietação com o espaço não me levaria a escrever sobre o 23B. O assento parece o lugar adequado para pensar no Brasil: estreito, sem grandes horizontes.
Já vivemos os grandes horizontes do país do futuro. Hoje está tudo tão apertado. Um copo d’água, um pacote de biscoitos salgados, penso na eleição presidencial: vejo apenas o estreito caminho que o Congresso abrirá ao vencedor.
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Projetos, projetos, mas não vejo de onde virá o dinheiro. Um dos temas mais populares é a promessa de tirar o nome dos devedores do SPC. Não entro no mérito, porque não sei quanto custará. Sei apenas que é mais uma sedução pelo consumo, não muito diferente da visão que nos arruinou.
Mesmo no campo do delírio, Cabo Daciolo me desapontou. Foi para a montanha falar com Deus. Não esperava que, no seu encontro com Deus, produzisse lindos poemas místicos como as freiras Mariana Alcoforado e Sor Juana Inés de la Cruz. Mas ele recebeu uma vulgar teoria da conspiração, que está em qualquer lugar da internet.
Deus mesmo, quando vier, que venha armado. Essa frase de Guimarães Rosa deve ter inspirado a política de segurança de Bolsonaro.
Deixo para trás Roraima com seu impasse. Não há como fechar a fronteira nem recursos para aguentar as consequências de sua abertura. Tudo muito B23.
O que me salva é um livro de Antônio Damásio, “A estranha ordem das coisas”. Fala de miniorganismos, de como as bactérias sentem o ambiente e reagem de forma organizada para sobreviver a ele. Elas fazem alianças até com inimigas, para sobreviver.
Essa sabedoria bacteriana, essa capacidade de realizar a homeostase, equilibrar diferentes variáveis, seria fundamental num momento em que estamos com uma perspectiva de dias piores ainda.
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Crescimento econômico e mais consumo não bastam. Será preciso reativar valores, pois foi sua falência que nos trouxe à ruína. Enquanto não soar a consciência do perigo à frente, mesmo consumindo mais, nossas esperanças no país continuarão baixas.
No 23B, estreitos cenários do segundo turno, as promessas de reforma política, mas ninguém combinou com os russos. Ainda nem sabemos quem serão os russos, a suspeita é de que sejam os mesmos de sempre.
Certamente, acharemos a saída. É pouco mais difícil achá-la aqui no 23B. Estamos chegando, vejo o Rio de Janeiro, minha alma canta. Canta de teimosa no estreito assento do meio. Crivella baixou a taxa municipal de exumação. Depois da morte, não é que a vida melhorou?
Fonte: “O Globo”, 03/09/2018
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