Se o plano de recuperação fiscal não for acompanhado de reformas estruturais que visem à redução de gastos com pessoal, o Estado do Rio corre o risco de sair do regime, em 2023, próximo da paralisia — uma situação de shut down no jargão econômico. Isso quer dizer que o estado não teria recursos suficientes para pagar a servidores e fornecedores ou investir em áreas estratégicas como segurança pública e infraestrutura, alertam economistas do Insper, que acabam de concluir um estudo sobre as finanças públicas fluminenses. Uma avaliação dos primeiros seis meses de vigência do plano mostra que boa parte das metas não está sendo cumprida: as 20 medidas previstas deveriam ter um impacto positivo de R$ 10,9 bilhões no caixa do governo até fevereiro, considerando aumento de receita e corte de despesas. Mas apenas metade desse valor se confirmou.
As reformas estruturais, dizem os pesquisadores, deveriam passar não apenas por mudanças na previdência — que têm efeito no longo prazo — como também por “uma gestão miúda”, com objetivo de alterar regras específicas de cada categoria que permitem reajustes automáticos de salários, como de professores e policiais, ou jornadas de trabalho que oneram a folha de pagamento. Por exemplo, enquanto a Polícia Militar de grande parte dos estados adota escala de 12 horas por 36 horas, no Rio, o regime privilegia a escala de 24 horas por 72 horas, o que, na prática, exige mais homens para policiar as ruas. Os especialistas alertam ainda para as brechas do plano que podem ser usadas pelo futuro governador, como a possibilidade de preencher vagas em aberto mesmo com o veto a novos concursos.
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— O problema estrutural do Rio é de pessoal. A população está envelhecendo, as aposentadorias são precoces e há reajustes automáticos permitidos pela legislação, que agravam a situação fiscal do estado — diz Marcos Lisboa, presidente do Insper. — Não vai ter uma lei que resolva tudo. Muito do ganho que o Rio de Janeiro pode obter está na gestão miúda. Precisa de uma equipe grande, que mergulhe nos detalhes.
Com a dívida duas vezes maior que a receita e um gasto de pessoal que comprometia cerca de 70% da arrecadação, o Estado do Rio entrou em colapso em 2016. Dois anos de recessão, somados à queda no preço do petróleo — que derrubou a receita com royalties — e à crise da Petrobras, que teve ex-dirigentes investigados pela Lava-Jato, deixaram as finanças fluminenses em frangalhos e expuseram sua frágil situação fiscal. Não restou alternativa ao governador Luiz Fernando Pezão senão aderir ao plano de recuperação, firmado com a União em setembro de 2017, e que permitiu a suspensão do pagamento da dívida em troca da adoção de uma série de medidas de contenção de gastos e de geração de receita adicional. Após seis anos de vigência, o incremento aos cofres públicos do estado seria de quase R$ 95 bilhões.
O estudo do Insper, coordenado pelo economista André Luiz Marques, da área de Gestão e Políticas Públicas do instituto, mostra que, mesmo se todas as 20 metas apresentadas forem cumpridas, os futuros ocupantes do Palácio Guanabara deverão enfrentar dificuldades para sustentar a máquina. Pelo plano, o equilíbrio entre despesas e receita seria alcançado em 2022. No entanto, no ano seguinte, com o plano já finalizado, o Rio teria R$ 3 bilhões de restos a pagar, espécie de cheque especial a que os governos recorrem quando atrasam pagamentos a fornecedores.
— Cerca de R$ 3 bilhões podem parecer pouco para uma receita prevista de R$ 50 bilhões naquele ano, mas o fato é que a volta do restos a pagar sinaliza uma tendência de piora nas contas de novo. Mantendo esse ritmo, o Rio chegaria a 2025 com restos a pagar de R$ 10 bilhões, montante próximo ao registrado em 2017, ano em que o governo do Rio mais atrasou fornecedores e salários — disse Marques. — Isso mostra como o plano é paliativo e como medidas adicionais são necessárias para equilibrar as finanças do estado.
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O secretário estadual de Fazenda e Planejamento, Luiz Cláudio Fernandes Lourenço Gomes, argumenta que o programa de recuperação fiscal é de longo prazo, complexo e que já impõe medidas duras. Diz ainda que muitos resultados projetados dependem da recuperação da economia e que, em alguns pontos, o cenário está mais favorável do que o previsto no acordo. Cita como exemplo o preço do barril do petróleo, que está em US$ 72, quando o previsto era de US$ 55, o que tenderia a elevar a receita com royalties. A cotação do petróleo, porém, é influenciada por diversos fatores, podendo subir ou descer em curtos períodos.
— As medidas estão surtindo efeito. Permitiram que colocássemos os salários (dos servidores) em dia, após 18 meses de atraso. E adotamos medidas estruturantes. O monitoramento das metas é constante e, se for necessário, podem ser feitos ajustes. Mas, por enquanto, consideramos que o que foi implementado é suficiente — afirma Gomes, reconhecendo que o esforço terá que ser contínuo ao longo dos próximos governos.
O levantamento do Insper mostra, no entanto, que 13 das 20 medidas previstas estão atrasadas ou tiveram o resultado abaixo do previsto para fevereiro, mês a que se refere o último relatório de acompanhamento. Entre elas, está a operação de crédito que tinha as ações da Cedae como garantia. O estado previa arrecadar R$ 3,5 bilhões com a operação, mas só conseguiu R$ 2,9 bilhões em um leilão que teve apenas uma instituição financeira interessada. Além disso, previa captar R$ 3 bilhões com antecipação da receita futura com royaties do petróleo, dos quais R$ 276 milhões deveriam ter entrado nos cofres públicos até fevereiro. Mas a operação só foi concluída em abril, e o montante arrecadado foi de cerca de R$ 2 bilhões, usados principalmente para quitar o 13º salário dos servidores de 2017.
Outro programa atrasado é o projeto de concessão das linhas de ônibus intermunicipais, que poderia gerar receitas de R$ 776,6 milhões até 2020. Mas o estado não contará com os recursos no prazo porque a licitação atrasou devido a uma série de liminares que questionam a concorrência. Apenas em fevereiro a Procuradoria Geral do Estado conseguiu revogar uma liminar que impedia qualquer preparativo para o lançamento do edital. O governo não dá qualquer previsão de quando ele será lançado, mas Gomes acredita que ainda este ano. A relação de ações fora do cronograma inclui ainda projetos que gerariam receitas menos expressivas, mas que ajudariam a reduzir o rombo de R$ 10 bilhões no Rioprevidência, previsto para este ano. Caso da venda de 64 imóveis, avaliados em cerca de R$ 200 milhões. Apenas dois foram vendidos ano passado, gerando R$ 4 milhões. E todos os 15 leilões previstos até maio foram adiados por problemas burocráticos ou ausência de compradores, no mercado imobiliário desaquecido.
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Os pesquisadores do Insper salientam que a execução das 20 medidas — atrasadas ou não — aconteceriam num cenário de forte represamento de despesas e de investimentos e que isso pode comprometer o funcionamento da máquina pública. O plano prevê que o estado invista R$ 1,1 bilhão em 2023, retornando ao patamar de 2002 em termos nominais — a inflação prevista para esse intervalo será de 250%, segundo o estudo. Considerando a relação entre investimentos e receita tributária, a taxa média entre 2018 e 2023 seria de 2,1%, muito abaixo da média alcançada no período de 2002 a 2016 (12,4%). Já a previsão de gastos para manutenção da máquina (as chamadas despesas correntes) ao fim do plano correspondem ao nível de 2014. Se com a despesa atual, os cariocas já tiveram que se acostumar com situações precárias, como os carros de polícia de figuração — que não rodam porque não há dinheiro para abastecer o tanque —, os pesquisadores questionam o que acontecerá com o serviços público nos próximos anos.
— O plano prevê investimento praticamente zero… E ainda chegaríamos a 2023 com a perspectiva de voltar a atrasar pagamentos. Isso dá noção da seriedade da situação. Se não tomarmos medidas adicionais, teremos um shut down — diz Marques.
O economista enfatiza a necessidade de ampla fiscalização do plano por parte da sociedade, pois o próximo governador cumprirá seu mandato justamente durante o período em que a dívida do estado ficará suspensa — o pagamento de juros e amortizações só será retomado em 2022. Qualquer medida fora da rota, portanto, pode acabar empurrando a conta para quem assumir o governo no ano seguinte. Também observa que o estudo não leva em conta medidas que possam ser adotadas pela atual ou futura gestão capazes de comprometer o pacote de austeridade. Cita como exemplo a tramitação do novo plano de cargos de salários dos servidores da Saúde.
GASTOS EM OUTROS PODERES PREOCUPAM
A proposta prevê que as remunerações serão reajustadas gradualmente ao longo de 48 meses. Segundo os cálculos do governo, o impacto será de R$ 92 milhões na folha de pagamento, incluindo a de inativos. Pezão vetou o projeto mas a Alerj derrubou a restrição em sessão na última terça-feira. O texto, porém, condiciona a aplicação da medida a uma avaliação prévia do Conselho de Supervisão do Regime de Recuperação Fiscal, uma vez que o acordo assinado com a União veda a concessão de reajustes e criação de novas despesas continuadas durante o prazo em que o plano estiver em vigor.
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O problema é que o conselho não tem autonomia para suspender a implementação de projetos do governo, diz Marques. Ele tem caráter consultivo, apontando descumprimento de prazos ou decisões que contradizem as premissas do plano. Os pesquisadores também citam outros fatores que dificultam que as contas sejam colocadas em dia. Um exemplo é o fato de instituições como o Tribunal de Justiça, o Ministério Público, o Tribunal de Contas do Estado (TCE) e a Assembleia Legislativa terem menos restrições de despesas em comparação ao Executivo. Isso porque, ao longo dos anos, esses órgãos recebem integralmente em cotas mensais (os chamados duodécimos), as verbas previstas nos orçamento. Com isso, apenas o Executivo se vê forçado a cortar gastos de forma mais intensa.
Gomes afirma que houve preocupação em encontrar mecanismos para conter a expansão das despesas dos todos os poderes, com a aprovação de uma lei de teto de gastos, em junho de 2017, válida por três anos, prorrogáveis por mais três. O texto prevê que a despesa de todos os poderes não poderá ultrapassar o que foi gasto em 2015 e estabelece restrições para as despesas dos anos seguintes. A partir de 2019, o teto será corrigido pela variação da receita corrente líquida (arrecadação com tributos mais transferências menos despesas) ou pelo índice de inflação — o que for menor.
— Em relação aos gastos com pessoal, já existem restrições. Nos próximos anos, o estado não poderá fazer concursos exceto para repor pessoal em áreas essenciais: saúde, educação e segurança — afirma Gomes.
Quanto ao volume de investimentos, o secretário admite que “será limitado nos próximos anos”, mas argumenta que, no passado recente, o estado aportou recursos consideráveis em infraestrutura para as Olimpíadas de 2016.
Fonte: “O Globo”