Nove de novembro de 1989, uma multidão de anônimos derrubou o vergonhoso muro de Berlim. Momento histórico! Em cima de quem caíram as pedras que o constituíam? O que passou pelas avenidas agora franqueadas pelo vento?
Aos dezoito anos eu era um estudante universitário de teatro, membro do Partido Comunista Brasileiro e venerava o alemão Berthold Brecht. Lia tudo que podia do mais comunista artista de teatro do século vinte, muitas vezes em inescrupulosas traduções de suas ideias. Em assembleias, ou mesmo em sala de aula, proferia frases inteiras com a pompa e arrogância que a ignorância da juventude inebria. Em outras ocasiões consegui conquistar algumas moças com o palavrório revolucionário de seus poemas. Elas adoravam, principalmente as que tinham nascido em berço de ouro. Freud explica melhor o fenômeno. Meu sonho, no entanto, era visitar o que, para mim, era a Meca do teatro ocidental, o Berliner Ensamble, teatro cedido pelo governo da Alemanha Oriental para abrigar a companhia de teatro do dramaturgo. Fui, e senti imenso orgulho ao passar pelos rolos de arame farpado e pelo muro que dividiam a Alemanha e o mundo. Acreditava naquilo e a emoção tomou conta de mim ao pisar pela primeira vez no solo de um país socialista. Nada me pareceu errado, nem o cinza triste das ruas, nem a arquitetura monstruosa dos novos prédios que nada mais era do que a tradução do delírio da reengenharia humana, nem ter sido roubado pela conversão igualitária dos Marcos, nada. Eu justificava tudo, inclusive os assassinatos dos que tentaram pular o muro. Era pela causa santa! Na catedral do teatro revolucionário, em meio à fantasia de um passado que romantizava – pois para mim o que tinha sido crime não se constituía como tal -, me senti pleno. Respirava o mesmo ar que o mestre havia respirado. Uma coisa me chamou a atenção: o pequeno lugar disponível para acolher a orquestra. Perguntei como poderiam caber ali os músicos e seus instrumentos e o “dramaturg” de plantão me respondeu que Brecht não gostava dos instrumentos de cordas, eles emocionavam a plateia, inibia o discernimento objetivo da realidade, e sua inevitável transformação. Sorri, sem atentar para o desprezo e a onipotência embutidos naquela opinião. Gastei todo o meu parco dinheiro em pôsteres revolucionários e parti de volta para o mundo selvagem do capitalismo, cheio de cor, lojas, Mac Donalds e algazarra. Bebi muita cerveja alemã e deitei falação sobre o mundo novo, coisa que não poderia fazer do outro lado do muro. A vida prosseguiu, foi boa comigo e pelos meus caminhos me afastei dessa loucura, e acabei expulso do partidão. A arte e o teatro deixaram de ser instrumentos de agitação e propaganda. Alguns anos depois, o muro veio abaixo e o tempo coincidiu com um convite para participar de um simpósio sobre teatro na Alemanha reunificada. Visitamos muitos teatros em varias cidades alemãs, culminando com uma ida ao Berliner Ensamble. Lá, guiados por um notório diretor brasileiro comunista e tradutor de inúmeras obras de Brecht, fomos recebidos pelo mesmo “dramaturg” de então. O diretor brasileiro era nosso tradutor. Depois de muita conversa mole sobre a importância e atualidade da obra de Brecht, perguntei como explicar que um teatro tão antenado com a realidade não previu a derrubada do muro. O velho homem de teatro começou a responder com uma argumentação totalmente descabida para a pergunta, o que provocou desconforto em quem entendia o alemão. O que estava acontecendo? O tradutor havia mudado a pergunta. Ali se realizava mais uma vez um comportamento que levou milhões para a cova. Se a pergunta não serve para a resposta pronta, muda-se a pergunta. Se o indivíduo não se encaixa no programa de reengenharia do homem, aniquila-se o indivíduo. A argamassa que edificou o muro foi a ideologia da massa, do povo, a etapa intitulada ditadura do proletariado e o que o derrubou foi a força do indivíduo. Esse é o poder que enlouquece um totalitário, o poder do indivíduo. Alguém lembra do nome do líder com uma picareta na mão, destruindo o muro? Impossível, foram centenas de indivíduos anônimos. As pedras caíram sobre aqueles que, em nome do povo, praticaram enormes crimes contra a liberdade individual, contra a propriedade privada e contra a democracia representativa. Mas, parecidos com os personagens do clipe “Thriller”, de Michael Jackson, os mortos vivos saíram de suas tumbas e ainda assustam entre nós. Onde floresce o pensamento totalitário de aniquilamento do diferente, da democracia representativa, da liberdade de imprensa e da livre iniciativa encontramos um monstro saído dos escombros do muro.
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