Quando Dilma Rousseff traficou a foto da atriz Norma Bengell para seu site oficial, fazendo-se passar pela atriz numa passeata contra a ditadura, houve um certo mal-estar. Mas não foi tão absurdo assim.
Dilma, a candidata de Lula para governar o Brasil, anda dizendo por aí que tirou o país da inflação descontrolada.
Para uma mulher que se faz passar por Pedro Malan, convenhamos, roubar a identidade de Norma Bengell é o de menos.
Essas coisas são normais hoje em dia. Luiz Fernando Verissimo escreveu um texto genial contra o Big Brother Brasil, que logo se espalhou pela internet. O único problema era que o texto não era dele (e não era genial, mas isso é detalhe). O suposto autor ainda se atreveu a desmentir, mas a web não lhe deu bola, e o artigo-fantasma continuou bombando.
Dilma Rousseff está, de certa forma, sintonizada com seu tempo. Para o mau entendedor, tanto faz Malan, Norma Bengell ou Verissimo desde que a mensagem contenha o que ele quer ouvir. Ouçam Dilma em recente comício para militantes na Câmara de Vereadores de São Paulo: Lembro muito bem o que era o governo de transição. Ali tivemos o apoio de vocês, que nos deu a centralidade para fazer o que chamo de a passagem pelo deserto, porque este país estava com inflação descontrolada, de certa forma de joelhos, diante de sua dívida externa, do seu compromisso com o FMI. A passagem pelo deserto deve mesmo ter sido extenuante. Muito sol na cabeça não faz bem a ninguém.
Ali surgem as miragens, os delírios e, sabe-se agora, a mitomania.
É a construção de um novo Brasil, declarou a candidata do PT no mesmo discurso. Não há dúvida, novo em folha. E, para garantir, o jeito foi apagar tudo que é velho: o Plano Real, as metas de inflação, a responsabilidade fiscal, a política de superávit primário, a renegociação da dívida externa, o fim da farra dos bancos estaduais, a abertura da economia, a atração de divisas a partir do fim das moratórias populistas e da redução do risco-Brasil. Sumiu tudo na poeira do deserto petista.
Retocar a história é um clássico do stalinismo, mas com isso o Plano Dilma não compactua. É arriscado, sempre fica algum vestígio da manobra.
Melhor apagar tudo. Explicar que o governo de transição foi uma passagem de bastão de Pedro Malan para Antonio Palocci tornaria o novo texto confuso. O jeito foi sumir com o bastão.
Até aqui está dando tudo certo. O povo não parece muito interessado no pântano que era a economia brasileira uma década antes de 2003, o ano zero. É uma pré-história realmente repugnante. Tinha monstros à solta, como um dragão que devorava até metade do salário do trabalhador mesmo que ele não gastasse nada. A expressão poder de compra soava ridícula na boca de qualquer governante.
Prometer trazer de volta o ser amado em dois dias era mais seguro.
De 1993 a 2003 aconteceram as tais coisas velhas que o novo Brasil deixou para trás. Na economia pantanosa, onde tudo que se construía afundava lenta e gradualmente, surgiram pilares. (O PT foi contra todos eles, mas o pessoal botou assim mesmo).
O trabalhador, o pobre, descobriu enfim que o tal poder de compra não era ganhar na loteria, ou papo de bruxaria. Foi nessa pré-história horrenda que o Brasil entendeu o sentido da expressão dinheiro na mão.
É sobre esse chão de verdade que hoje evolui a DisneyLula, e seu divertido jogo dos sete erros. Empilhamos dois tijolos onde não havia nenhum! Nosso governo é 200% melhor que o deles! Os números não mentem! Não mentem mesmo. Quem mente é quem os recita, nessa aritmética deliberadamente ignorante, que o povo ama e aplaude. Guido Mantega, o ministro surfista, enteado do Banco Central a quem dirige sua rebeldia sem causa, anuncia para uma plateia da CUT um PIB de 6% para 2010. E tripudia, bradando que Lula priorizou o crescimento: É incorreto dizer que este governo manteve a política econômica anterior. Houve uma mudança na forma de o Estado agir. Ainda bem que a plateia contente não pergunta que mudança foi essa.
Teria sido o PAC? Não… Os números, se bem adestrados, até mentem um pouquinho. Mas Mantega sabe que, se ligar o PAC ao PIB, depois não arranja emprego nem de faxineiro da FGV.
José Dirceu, o homem, o mito e a consciência da companheira Dilma, já a instruiu para trombetear que a dívida interna explodiu no governo FHC. Segue o joguinho de sete erros.
Na abominável pré-história, a dívida pública era em grande parte clandestina, não contabilizada (expressão depois imortalizada por Delúbio) e devorava os investimentos. O governo anterior tirou-a do armário, trouxe à luz todos os seus zeros e começou a pagá-la. Foi um plano concreto de aceleração do crescimento que tragicamente não tinha sigla nem placa.
É claro que numa campanha eleitoral ninguém vai explicar um rolo desses.
Neste novo Brasil, ninguém se comove com o passado. Nem a Norma Bengell.
Fonte: Jornal “O Globo” – 15/05/2010
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