A decisão do Facebook de desativar 196 páginas e 87 contas ligadas ao Movimento Brasil Livre (MBL) foi apresentada como medida de combate às fake news, às vésperas de eleições. A rede social alegou que se tratava de perfis usados para “gerar divisão e espalhar desinformação”. A decisão é problemática, do ponto de vista da liberdade de expressão individual e da perspectiva coletiva da livre formação do debate social.
O Facebook é um fórum público, espécie de espaço coletivo não estatal, no qual os membros das comunidades são responsáveis pelo que veiculam. Diferentemente do que se dá com os veículos de imprensa tradicionais, não há o editor, responsável pela filtragem dos assuntos, checagem da veracidade e definição do que será publicado. Assim, qualquer medida de exclusão de páginas e contas deve ser solidamente fundamentada à luz da ordem jurídica, sob pena de gerar grave efeito silenciador sobre parte da comunidade política e indesejáveis distorções na construção do debate democrático, tecido cada vez mais no ambiente digital.
Há duas alegações invocáveis pelo Facebook como possíveis justificativas: o caráter privado da rede sob seu controle e a necessidade de evitar os efeitos deletérios de notícias fraudulentas (melhor tradução possível para fake news). Ambos os argumentos, a meu ver, não ficam de pé.
Leia mais:
Sobre polarização e consensos
Para advogados, veto a sátiras protege “quem já está no poder”
STF deve ter maioria para derrubar restrições a emissoras
As redes sociais não são espaços privados comparáveis aos cômodos de uma residência e nem aos computadores e smartphones particulares. A despeito de sua natureza não estatal, o ambiente sociodigital envolve pluralidade de pessoas em convívio coletivo e livre, a partir da decisão autônoma de cada participante de solicitar o acesso e aceitar a companhia alheia. Forma-se, assim, um espaço público não estatal, cuja participação e permanência se sujeitam só à vontade de cada membro. O administrador da rede não tem poderes absolutos de exclusão de partícipes por íntima convicção, como alguém que expulsa um intruso de casa por mera invocação do direito de propriedade. Sobre ele recaem deveres de respeito e tolerância em relação às diferentes manifestações dos membros da rede, sem discriminações ou preferências, salvo, é claro, quanto àquilo que configurar atividade criminosa.
De outra parte, a alegação de enfrentamento às fake news soa mais como pretexto para a exclusão de opiniões desagradáveis, inconvenientes ou apenas politicamente incorretas. Eu mesmo sinto náuseas em relação a algumas, mas ninguém pode ignorar que a página Brasil 200, por exemplo, contava com 400 mil integrantes interessados em debater assuntos de interesse público. Ao decidir banir as páginas e contas do MBL, o Facebook rotula como fake news, de maneira apriorística e perigosamente generalista, todas as informações, ideias e opiniões que por ali circulavam livremente. Quem conferiu a Mark Zuckerberg acesso privilegiado à verdade? Tal como ao Estado, opõe-se aqui também a ele a velha aporia da teoria política: “quem controla os controladores?”
Ao assim agir, o Facebook não só cerceia de modo injustificado a liberdade de expressão de milhões, como contribui para a criação de um debate fake no ambiente digital, ao qual só tem acesso quem adira ao pensamento predominante entre formadores de opinião. O problema das fake news — sério em todo o mundo — não se revolve com canetadas censórias, estatais ou privadas, igualmente inconstitucionais.
As iniciativas mais promissoras são as agências de checagem de notícias, que oferecem ferramentas para a verificação da veracidade de notícias, apartando as fraudes de manifestações meramente interpretativas ou opinativas. Decerto que haverá divergências entre agências, veículos e jornalistas sobre a própria verificação das notícias. Mas isso só demonstra a inviabilidade de solução baseada na exclusão de alguns e na imposição unilateral de uma verdade. A pluralidade de fontes de informação e de verificação, submetidas à crítica da cidadania quanto a sua confiabilidade ou descrédito, é o melhor antídoto, senão o único, contra as fake news.
Fonte: “O Globo”, 07/08/2018