“Um inimigo do povo” (L&PM, 2001), o livro de Henrik Ibsen, citado pelo ministro do STF ao comentar a decisão dos colegas de tirar José Dirceu e outros réus da Lava Jato da cadeia
Depois que a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu tirar da cadeia José Dirceu e outros réus da Operação Lava Jato, o ministro Edson Fachin, relator e voto vencido, citou o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen: “Saí daqui ontem com vontade de reler o Ibsen, “Um inimigo do povo” e a história do doutor Stockmann”. Na peça de 1882, Thomas Stockmann é médico numa aldeia cuja economia era impulsionada por uma estação balneária. Descobre que as águas são contaminadas pelo esgoto de um curtume e tenta levar a notícia à imprensa, com base num laudo técnico. Seu irmão, prefeito, consegue evitar a publicação e lança um desmentido, para evitar que a cidade fosse prejudicada pela fuga dos turistas. Stockmann convoca então uma reunião para apresentar os fatos, mas é impedido de falar por uma aliança entre o prefeito, jornalistas e representantes dos pequenos empresários. Passa a vituperar contra a “massa amorfa” de cidadãos. “A maioria nunca tem razão! Esta é a maior mentira social que já se disse!”, diz aos brados. “Quem constitui a maioria dos habitantes de um país? Pessoas inteligentes ou imbecis? (…) Os imbecis formam maioria esmagadora. É motivo suficiente para que mandem nos demais.”
Leia “Um inimigo do Povo”, de Henrik Ibsen
Depois que a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu tirar da cadeia José Dirceu e outros réus da Operação Lava Jato, o ministro Edson Fachin, relator e voto vencido, citou o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen: “Saí daqui ontem com vontade de reler o Ibsen, “Um inimigo do povo” e a história do doutor Stockmann”. Na peça de 1882, Thomas Stockmann é médico numa aldeia cuja economia era impulsionada por uma estação balneária. Descobre que as águas são contaminadas pelo esgoto de um curtume e tenta levar a notícia à imprensa, com base num laudo técnico. Seu irmão, prefeito, consegue evitar a publicação e lança um desmentido, para evitar que a cidade fosse prejudicada pela fuga dos turistas. Stockmann convoca então uma reunião para apresentar os fatos, mas é impedido de falar por uma aliança entre o prefeito, jornalistas e representantes dos pequenos empresários. Passa a vituperar contra a “massa amorfa” de cidadãos. “A maioria nunca tem razão! Esta é a maior mentira social que já se disse!”, diz aos brados. “Quem constitui a maioria dos habitantes de um país? Pessoas inteligentes ou imbecis? (…) Os imbecis formam maioria esmagadora. É motivo suficiente para que mandem nos demais.”
Mas o recado político de Ibsen vai além. Stockmann defende aquilo que os cientistas políticos chamam de “epistocracia”, o governo de uma minoria esclarecida sobre a maioria ignorante. Sua mensagem é na essência antidemocrática, pois ele nega ao povo – visto como massa de “imbecis” – o discernimento necessário para tomar as melhores decisões em seu próprio nome. Decisões eleitorais recentes, como o Brexit no Reino Unido, reabriram o debate sobre a epistocracia entre acadêmicos. Um de seus defensores é o filósofo Jason Brennan, da Universidade Georgetown, autor de Against democracy (Contra a democracia), lançado no final do ano passado. Brennan oferece argumentos mais sofisticados que Ibsen. Não é que os cidadãos sejam imbecis, diz ele. É que o voto de cada um tem influência tão ínfima no resultado eleitoral que não vale a pena para ninguém informar-se para valer. A maioria vota como forma de punir aqueles a quem atribui os próprios infortúnios, sem saber “o que fizeram, por que fizeram, o que poderiam ter feito, o que aconteceu quando fizeram o que fizeram e se os desafiantes têm chance de fazer melhor”. Em termos de políticas públicas, o resultado de uma epistocracia seria, para Brennan, mais eficaz.
Embora bons resultados sejam desejáveis, o principal objetivo da democracia não é alcançá-los. Nenhuma Constituição democrática veta à maioria o direito de errar, nem lhe impõe o dever de acertar. A vantagem da democracia não está necessariamente em conduzir à verdade e ao bem comum, mas em estabelecer uma regra de convívio pacífico que todos respeitem, em permitir a transição pacífica de poder entre diferentes grupos. É inerente à democracia, como a qualquer regime político, a tensão com a verdade. “Opinião, não a verdade, é um dos pré-requisitos indispensáveis a todo poder”, escreveu a filósofa Hannah Arendt em “Verdade e política”, ensaio de 1967, cinco décadas antes de alguém falar em “pós-verdade”. Se o linchamento das opiniões divergentes da minoria é detestável, o heroísmo autoritário de Stockmann também pode ter consequências nefastas – por sinal, Fachin não foi atacado como “inimigo do povo” nas redes sociais, ao contrário dos ministros que votaram pela libertação de Dirceu. Nenhum dos dois extremos combina com uma realidade democrática.
Fonte: “Época”, 14/05/2017
Parabéns Helio,e também pelo (porque Temer precisa sair).